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Papai Noel, barba e barriga

 

O mercado natalino é uma fonte de empregos transitórios. Deles, o mais transitório é representado pelas pessoas que se fantasiam de Papai Noel. Um desempenho que não exige muito talento teatral; tudo o que o Papai Noel tem a fazer é sentar-se na frente de um estabelecimento comercial, receber as crianças, fazer gestos amistosos, sorrir.

Nem mesmo o tradicional “Ho, ho, ho” lhe é exigido. Mas há algumas precondições que ajudam. Em São Paulo, são mais bem pagos homens que exibem dois característicos: longa barba branca (verdadeira, não postiça) e barriga avantajada (idem).

Esta preferência diz muito sobre nossas fantasias. Para começar, a barba. Normalmente, uma barba tipo Papai Noel seria considerada algo inusitado, para dizer o mínimo. De imediato pensaríamos naquele que a usasse como membro de alguma seita religiosa, como alguém esquisito. No entanto, Deus é sistematicamente assim retratado; mais, a barba faz parte da cultura do Oriente Médio, berço das religiões monoteístas. Agora: tem de ser uma barba branca.

Longas barbas negras, como aquelas que exibiam Fidel Castro e seus companheiros quando tomaram o poder em Cuba, evocam mais a contestação e a revolução do que qualquer outra coisa. Barba branca significa uma idade venerável, significa sabedoria; impõe respeito. Mostra que o Papai Noel é confiável, uma figura paterna, protetora e dadivosa.

A barriga tem conotação análoga. Barriga significa prosperidade, abundância de alimento. Hoje, as pessoas querem, através da dieta e do exercício, diminuir a cintura, que, quando exagerada, está efetivamente associada a riscos para a saúde. Quando surgiu a figura do Papai Noel, a situação era outra. A fome e a magreza eram comuns – e temidas. Um homem gordo era aquele que tinha acesso a comida em abundância; era rico, portanto, e podia dar presentes generosos, coisa que também esperamos do Papai Noel.

Magros eram malvistos; na peça de Shakespeare, Júlio César suspeita de Cássio (que viria a assassiná-lo) exatamente porque é um homem magro, de olhar faminto. César quer a seu redor homens gordos, bem-humorados. Agora, a barriga de Papai Noel não impede que ele seja ágil, que viaje de trenó, que se introduza pela chaminé. É uma barriga na medida.

Finalmente, um terceiro característico do velhinho: ele é o Papai, com inicial maiúscula. Ele não é o Vô Noel, ele não é o Tio Noel, ele não é o Padrinho Noel, não, ele é o Papai. Um Papai de mentira, mas que mexe com pessoas, inclusive adultos, sobretudo adultos, e sobretudo aqueles que perderam os pais, uma carência que se prolonga pelos anos afora, porque orfandade não tem idade. Para essas pessoas, chamar alguém de Papai é um nostálgico conforto. E só ele já valeria o Natal e sua encenação.

Zero Hora (RS), 21/12/2010