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Padre Ávila e o testemunho da modernidade

 

Padre Fernando Bastos de Ávila, que perdemos a 6 de novembro, reunia três marcas exemplares do que possa ser o testemunho crítico da fé, no desafio do seu tempo. E sem nenhuma concessão aos conservadorismos fáceis, ou às rendições à boa consciência. Vindo da mais rica das formações teológicas e sociais, da Gregoriana a Louvain, criou, na PUC do Rio de Janeiro, a primeira grande escola de sociologia, nascida da ampla compreensão moderna da profissão, à luz dos rigores científicos de nosso tempo.

Vivíamos o Brasil dos anos 60, e do inevitável e primeiro compromisso com a mudança coletiva, a pedir a sua visão à luz da doutrina social da Igreja. Mas já em função desses novos “sinais dos tempos”, do cansaço do marxismo, e dos idealismos fáceis do nosso status quo, para tantos assimilado ao verdadeiro perfil da ordem social.

O Solidarismo surgia, criativo, do pensamento de Ávila, na tentação inevitável, na época, de uma terceira via, que não se dava conta ainda das condições de dominação e dependência da velha estrutura colonial, tão distinta dos modelos econômicos do capitalismo. Estes, por sua vez, se viam instintivamente valorizados pela doutrina social da primeira parte do século, frente ao anátema das esquerdas, associadas ao comunismo.

Devemos a Ávila a profunda discussão da nossa dimensão comunitária, trazida também à utopia cooperativa, no ímpeto do contrapor a realidade brasileira ao simplismo da luta de classes. Um país que vivia, anacronicamente, o seu processo de mudança, e as contradições do desponte do seu mercado interno, reclamava o papel do Estado neste empenho, e a prioridade das tarefas de “tomada de consciência” frente aos economismos sumários, na superação das condições catastróficas de marginalidade coletiva. Só agora dela saímos, de vez, no impulso dado pelos últimos governos ao desenvolvimento sustentado.

O Solidarismo contribuiu, e muito, para uma ruptura com as ”boas consciências“ do status quo do Brasil dos meados do século, a alimentar esta evolução generosa da Ação Católica à AP, nesta militância de entrega, a que acrescia a luta contra a ditadura militar, e tinha já o eco da grande visão do Vaticano II. Comandava-a o imperativo prioritário da justiça no mundo, de uma reflexão a encontrar, necessariamente, a sintonia entre promoção e libertação, e o apoio inédito com que a Igreja serviu de matriz no específico trabalho pastoral, à emergência do partido diferente, como o PT, egresso da marginalidade para a mais democrática das buscas do poder político pelo voto.

Na esteira do Solidarismo, o Ibrades, fundado por Ávila, somava-se a este compreender complexo da nossa sociedade, saída, de vez, da dicotomia pós-colonial e do país da marginalidade que apostou na democracia e não na violência, ao contrário das Farc e do Sendero Luminoso, da Colômbia e do Peru.

No mesmo impulso de trazida da doutrina social à mudança, Ávila emulava um dom Luiz Sturzo, já para além dos equívocos da democracia cristã. Nosso jesuíta fica como o pensador de uma intelligentsia militante, fidelíssimo aos “olhos de ver” os sinais concretos do advento deste “mais ser” de todos os homens, e do homem todo, a que nos conclamou Paulo VI.  E é este homem integral que, na sua última maturidade, nos dá ainda o documento único da reflexão brasileira, qual o das condições limite, quais a da Alma de um padre, no compromisso  que envolveu sua opção pelo sacerdócio nos reptos  da nossa mais exigente contemporaneidade. É, diríamos, a superação de vez do discurso edificante, ou dos conformismos de princípio, no que Ávila descerra-nos todas as dúvidas da vocação, a revisão dos estereótipos, das pressões familiares, do convencional da escolha, diante da sociedade visceralmente injusta, ou dos consolos fáceis da transcendência diante do mundo dos homens.

Na garantia, sempre, que o humor dá a verdadeira consciência do que diz, no cálido da conversa e do respeito ao interlocutor, não encontramos quem tenha na interlocução religiosa emprestado ao mundo das ideias e seu reconhecimento um verdadeiro sacramental da inteligência quanto Fernando Bastos de Ávila. Não se poderia permitir as beatitudes óbvias, mas a angústia e a problematização, que só lhe permitem chegar à visão crítica e implacável de um absoluto, que garantiu, de vez, a leitura final do sociólogo frente ao nosso real concreto.

Jornal do Brasil, 24/11/2010