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Os terríveis simplificadores

 

Creio que foi o historiador Jacob Burckhardt que disse, no final do século 19, que o século seguinte seria o dos "terríveis simplificadores". A profecia de Burckardt se realizou. Os dois principais simplificadores do século 20 chamaram-se Adolf Hitler e Josef Stálin. Ambos simplificaram a história, reduzindo-a a um confronto maniqueísta entre o bem e o mal, e o resultado foi a produção em massa de seres humanos radicalmente simplificados, convertidos em cinzas e ossadas. Os simplificadores não desapareceram no século 21. Como no passado, eles operam por meio do que poderíamos chamar de a distorção holística, a tendência a ver o todo como um conjunto indiferenciado, sem perceber que qualquer totalidade é tensa, que qualquer harmonia é aparente, que todo conjunto é fraturado por forças contraditórias. É preciso opor a esses simplificadores o que [o filósofo francês] Edgar Morin chama de "pensamento complexo", que tem entre suas características a de evitar a formação dos falsos universais, das generalizações espúrias. Os simplificadores de hoje atuam em várias frentes, entre as quais duas são especialmente importantes: a relação com os Estados Unidos e a relação com Israel.


Totalidade abstrata


Na primeira frente, a distorção holística tem como foco uma totalidade abstrata chamada "Estados Unidos". Com isso, os simplificadores se esquecem de que essa totalidade é composta de governo e sociedade, de que essas duas esferas muitas vezes se opõem e de que a sociedade é altamente diferenciada, não podendo ser julgada como um todo nem positiva nem negativamente.


Os simplificadores não se inquietam com essas diferenciações: para eles só existe um conjunto homogêneo, que eles chamam de "os americanos", representado por um presidente chamado George W. Bush. Essa identificação governo-país vale tanto para os que atacam Bush quanto para os que os defendem.


A indignação contra o grupo de extrema direita que tomou o poder na Casa Branca e no Pentágono, composto por fanáticos religiosos, por acadêmicos neoconservadores e por representantes de interesses empresariais, se converte muitas vezes numa condenação indiscriminada do país e do seu povo. A posição anti-Bush passa a ser uma posição antiamericana. Com isso, perdem-se de vista as clivagens internas dentro da sociedade americana, que inclui os que fizeram e apoiaram a guerra contra o Iraque, mas também uma porcentagem crescente dos que se opõem à ocupação daquele país. Identificar a administração Bush com os EUA tem também o efeito de tornar invisível o corte qualitativo que ela representa com o passado.


Por maiores que sejam as continuidades entre o unilateralismo de Bush e o velho intervencionismo de estilo imperialista, há uma enorme diferença entre a antiga política externa herdada do período da Guerra Fria, que bem ou mal reconhecia a existência do resto do mundo, e a nova doutrina estratégica dos EUA, que proclama a legitimidade de todos os meios considerados necessários para manter a hegemonia mundial de Washington. Mas os piores simplificadores vêm do campo dos que apóiam Bush, porque cometem duas vezes a distorção holística, e não apenas uma. Como seus adversários, seu objeto é um universal vazio, chamado "Estados Unidos", com a única diferença de que têm uma atitude positiva com relação a esse universal. Mas, além disso, aplicam aos adversários de Bush a mesma visão distorcida, criando um falsa totalidade, que mascara as diferenças reais. Para eles, todos os críticos não-americanos de Bush são culpados de antiamericanismo. Do seu ponto de vista, não deixam de ter razão, porque, se de fato o governo Bush se identifica com o país, atacar Bush é ser antiamericano. Mas, com isso, seu campo visual exclui a percepção dos outros críticos, dos que não somente não são antiamericanos, mas criticam Bush exatamente por levarem a sério os valores de liberdade e democracia embutidos no Iluminismo norte-americano. Esses simplificadores pró-Bush floresceram na França, na esteira dos atentados do 11 de Setembro. Os "novos filósofos", hoje não tão novos assim, fizeram questão de dizer que as críticas à invasão do Iraque nada mais eram que a ressurreição dos velhos clichês do "antiamericanismo vulgar", endêmico entre os intelectuais europeus desde os tempos da Guerra Fria. Jean-François Revel publicou um livro deplorando o que ele considera a "obsessão" antiamericana. A verdade é que, se muitos críticos de Bush se enquadram nessa categoria, em sua maioria os críticos da invasão do Iraque estavam simplesmente condenando uma guerra imoral e ilegal, o que era seu direito e, quase diria, seu dever. No que diz respeito à segunda frente - a atitude com relação a Israel -, a distorção holística tem uma extensão amplíssima. Ela consiste na criação de um todo metafísico, sem articulações internas, que compreende o governo de Israel, a sociedade israelense e o povo judeu. Essa homogeneização encerra o risco de que uma crítica em si legítima ao governo de Ariel Sharon possa degenerar numa contestação a Israel - e mesmo numa posição anti-semita - e no risco simétrico de que qualquer crítica a Sharon, mesmo sem essas características, possa ser interpretada, erroneamente, como antiisraelense e anti-semita. Os dois riscos estão ficando cada vez mais concretos. Boa parte da esquerda mundial está indo além da crítica a Sharon: ela está demonizando o próprio Estado de Israel. E está fazendo algo de infinitamente grave: pelo menos por omissão, está sendo cúmplice de uma nova onda anti-semita, a mesma que tem incendiado sinagogas na França e na Turquia. Não é a primeira vez que posições anti-semitas são defendidas por pessoas que se acreditam de esquerda. Afinal, muitos socialistas europeus da época do caso Dreyfus achavam estar sendo progressistas quando denunciavam conspirações de banqueiros judeus, comandadas pela família Rotschild.


Anti-semitismo no Brasil


Mas é espantoso que essa tendência esteja renascendo hoje, depois de Auschwitz. O Brasil não tem estado imune a essas perversões. Desde o Estado Novo há entre nós um anti-semitismo de cunho fascista (prolongando o antijudaísmo religioso do período colonial), difundida no tempo de Vargas por figuras como Gustavo Barroso. Mas está se generalizando, cada vez mais, uma variedade de anti-semitismo que se pretende de esquerda.


Por exemplo, um partido socialista tem entre seus quadros um editor neonazista que nega a realidade do Holocausto. O direito desse neonazista de divulgar suas opiniões foi defendido, em nome da liberdade de expressão, por um juiz cuja origem ideológica era aparentemente de esquerda. Tenho ouvido jovens entusiastas, com impecáveis credenciais petistas, exprimirem seu repúdio a Sharon dizendo coisas que poderiam ter saído do Protocolo dos Sábios de Sion.


Mas não faltam também simplificadores no campo oposto. De novo, entra em jogo nossa velha conhecida, a distorção holística. Do fato de que alguns adversários de Sharon sejam também inimigos de Israel e anti-semitas, muitos defensores de Israel concluem que qualquer crítica às atuais políticas governamentais daquele país tem características antiisraelenses e anti-semitas. Vêem anti-semitas em toda parte, como os anti-semitas vêem judeus em toda parte. Esses simplificadores podem ser perfeitamente capazes de pensamento complexo em outras áreas, mas o tema do judaísmo é demasiadamente sensível, evoca associações excessivamente doloridas, para que nessa questão eles consigam fazer as diferenciações necessárias.


Essas simplificações não constituem apenas obstáculos ao conhecimento da realidade: são também direta ou indiretamente responsáveis por terríveis catástrofes humanas. Foi uma simplificação desse tipo, inspirada por um antiamericanismo primário, que levou ao atentado contra as torres gêmeas, que alimentou a alegria obscena com que milhares de pessoa comemoraram esse ato de barbárie, e que fez com que muitos intelectuais no fundo se regozijassem com o ataque.


É uma simplificação assim, inspirada pelo ódio contra Israel, que está na raiz dos abomináveis atentados suicidas praticados pelos palestinos e que faz com que muitos brasileiros que se dizem racionais dêem estatuto heróico aos "mártires", ao invés de lamentarem a atrocidade do seu ato de fanatismo.


São também simplificadores "terríveis", "schrecklich", no exato sentido que Burckardt deu à palavra, os americanos que na prática declararam guerra ao mundo islâmico, sem se darem conta de que a vasta maioria da população muçulmana se dissociou do terrorismo, e os membros do governo israelense que tratam toda a população palestina como se fosse composta de terroristas. São terrivelmente simplificadores, enfim, os que rotulam de antiamericanos e anti-semitas todos os críticos de Bush e de Sharon.


Pensamento complexo


Chegou a hora de recuperar a capacidade de fazer distinções. Chegou a hora de acabar com as simplificações. Chegou a hora do pensamento complexo.


No caso da relação com os Estados Unidos, uma esquerda mundial que se deixe guiar pela lógica do pensamento complexo saberá distinguir entre o governo Bush e os segmentos crescentes da população americana que se opõem à política belicista da atual administração. Seus interlocutores serão Noam Chomsky, Susan Sontag e Michael Moore, e não os pastores fundamentalistas e os magnatas do petróleo que hoje em dia circulam nos corredores de Washington.


No caso da relação com Israel, essa mesma esquerda saberá também distinguir entre governo e sociedade e, portanto, não verá esse país apenas em sua fachada estatal, monolítica, e sim em sua realidade social, fragmentada, amálgama de diferenças culturais e políticas, em que comunidades tradicionalistas coexistem com as elites culturais mais sofisticadas do mundo. Saberá também fazer a distinção entre Israel e o judaísmo e, portanto, não imaginará que os interesses do Estado de Israel sejam representados pelos partidos religiosos ultra-ortodoxos, que, invocando as promessas feitas por Deus a Abraão, se opõem a qualquer retirada dos territórios ocupados.


Em consequência, ela se identificará com os grupos de mentalidade secular que desejam sinceramente o entendimento com os árabes, e não com a coligação de partidos de direita e de extremistas religiosos, dirigida pelo primeiro-ministro Sharon. Seus interlocutores serão pessoas como o romancista Amos Oz e o cineasta Amos Gitai ou os aviadores que se recusaram a atacar territórios palestinos. Seu modelo poderá ser o plano de paz conhecido como Iniciativa de Genebra, recém-negociado entre pessoas de boa vontade, com participação de políticos israelenses.


Essa iniciativa, mesmo simbólica, mostra que ainda há lugar para a razão, num conflito complexo que duas intolerâncias rivais parecem condenar à mais extrema das formas de simplificação -o extermínio mútuo.




Folha de S. Paulo - Revista Mais (São Paulo - SP) em 04/1/2004