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O Raio deprimido

 

Augusto Monterroso, fabulista genial, natural da Guatemala, em sua obra-prima, "A Ovelha Negra", é um representativo exemplo da imaginação criativa, escreveu, em "O raio que caiu duas vezes no mesmo lugar: 

"Houve um Raio que caiu duas vezes no mesmo lugar, porém achou que na primeira tinha feito estrago suficiente, já que não era necessário, e ficou muito deprimido." 

Nós não somos raios, nem sabemos bem, onde na tempestade o raio cai, ou de quanta luz possui o raio, ou se é pessoa do espaço ou do susto, ou da morte. 

Recordo que, na infância, sentava numa escada de casa e me achava atônito com a tempestade, ou o vento gemendo, os relâmpagos explodindo e a forma como a luz corria. 

Temia o tombar do raio, sim, sua pontaria desvairada. Mas já pensei que um Raio pudesse padecer de depressão. Ou sofresse qualquer distúrbio de desespero. Ou atraísse sobre si o abatimento ou a mudança temperamental, ou a tirania da tristeza. Ou tivesse consciência dos seus estragos. 

Já salientei que não se deve tocar em alma, matéria tão abalável ou sensível, ou devastadora. Mas nunca julguei que atingisse de forma tão fatal os elementos da natureza. Ou a natureza sentisse os eflúvios ou temores do homem. 

Sófocles, o famoso teatrólogo Recordo que, na infância, sentava numa escada de casa e me achava atônito com a tempestade, ou o vento gemendo... da antiguidade grega advertia que "nada era mais estupendo do que o homem". 

Estariam os reflexos da melancolia repercutindo no desamparado Raio. Ou talvez o Trovão seja de tal modo gritador, que nem escute a si mesmo no paroxismo. Mas o Raio pode sofrer depressão. 

Se é visão extravagante, a realidade também é, o mundo é cada vez mais o que não percebemos. E de perceber nos exaurimos , quando a maioria das coisas nos escapam. 

Se alguma vez sonhamos com o Raio, é bom que o Raio não sonhe conosco. Nem nos veja, muito menos nos alcance, tocando mais as árvores altas, que as pequenas e baixas. Sendo sábia proteção a humildade. 

Nem se diga que o Raio conheça teologia - o que seria miraculoso - ou tenha a ciência das estrelas. Mas pulsaria na velocidade do Raio, em plena chuva, alguma espécie de amor? Ou teria o discernimento de não querer ferir, ou em breve instante nos reconhecer? 

A Tribuna (ES), 04/12/2016