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O público e o privado

 

A distância que vai da antiga polis dos gregos, com alguns poucos milhares de habitantes, ao Estado contemporâneo, em especial nas sociedades de massa de nossos dias, é a mesma que separa a maioria dos cidadãos da democracia. Essa é, seguramente, a razão pela qual, quase em toda parte, as instituições políticas e os poderes do Estado não são os mais bem avaliados pela opinião pública. A percepção do cidadão é a de que conceitos como política, poder e autoridade não são mais que entraves aos seus direitos.


 


Nunca, como atualmente, o que é público esteve tão longe do privado. Enquanto não restaurarmos o velho e esquecido princípio jurídico de que, na vida privada, tudo o que não é proibido é permitido, e de que, na vida pública, é proibido tudo o que não é explicitamente permitido, não vamos conseguir consolidar a confiança nas instituições, que, diferentemente da transitoriedade dos governos, são permanentes.


 


De que vale o parlamento aprovar centenas de leis que nada têm a ver com a utilidade pública, restritas que são, em sua maioria, aos interesses do próprio Estado? Que proveito a população pode esperar de milhares de decisões judiciais se a Justiça que está ao alcance dos cidadãos — em que pesem os avanços da Emenda Constitucional nº 45 — é apenas a dos juizados especiais e a que resulta da ação dos Procons?


 


A maioria dos conflitos que separam os cidadãos provém das dificuldades enfrentadas por todos na vida cotidiana, em seu relacionamento com o próximo, e advém da mesma fonte: a deficiente cultura cívica. Onde claudica a pedagogia cívica, aquela que torna amena a vida em comunidade, não pode haver cultura política, de cujas deficiências padecem as democracias.


 


Instituições como lei e justiça, ordem e responsabilidade coletiva, sobre as quais foram erigidos os padrões da civilização, correm risco pela perda de confiança das pessoas na eficiência das demais instituições da sociedade. E o resultado é a repetição, no plano individual, das carências que podem ser observadas nas ações coletivas das multidões: as chacinas, o abuso da força, o império da violência pela certeza da impunidade e de sinais cada vez mais visíveis de desvios de conduta dos que agem inspirados não por padrões civilizados, mas pelos das multidões desregradas.


 


O homem contemporâneo deixou de ser mero expectador na “multidão solitária”, a que se referiu David Riesman, em livro assim intitulado. Para reverter um quadro que se dissemina em várias nações, como o que este ano abalou os subúrbios de Paris, berço de tantas tradições culturais, temos que começar pelos péssimos hábitos da vida pública que se repetem na vida privada. Entre eles, o de não observar deveres elementares, inclusive o de cumprir horários; o da incontinência verbal; e o uso abusivo dos jargões que lamentavelmente degradam cada vez mais o sentido da autoridade, que deve presidir tanto a conduta coletiva quanto a que se espera prevaleça na intimidade da vida familiar.


 


A utilização desmesurada dos infinitos recursos judiciais com que os contendores privados procuram se livrar do cumprimento de suas obrigações, postergando-as com o auxílio de leis processuais e decisões que têm em vista mais os meios que os fins, é a mesma que o poder público emprega de forma imemorial para não cumprir suas obrigações para com a cidadania, abarrotando varas e tribunais, como se a chicana tivesse o dom de superar o direito dos que são lesados pelo uso incorreto do poder. O expressivo número de 17 milhões de ações impetradas em cada ano é indicativo do estado cartorial em que estamos mergulhados.


 


Só a educação, mais que o ensino, e o ensino pelo exemplo podem reverter essa situação que ameaça se espalhar por toda parte, pondo em risco os padrões sem os quais as sociedades ordeiras e organizadas não sobrevivem. Afinal, é preciso não esquecer que as condutas irregulares na vida pública costumam se reproduzir na vida privada, da mesma forma que os desregramentos da vida privada terminam contaminando a vida pública. Sem reformar, portanto, as instituições, jamais construiremos uma sociedade governada pela lei e não pelos homens, tarefa que pressupõe políticas voltadas para uma verdadeira democracia.


 


Correio Braziliense (Brasília) 09/08/2006

Correio Braziliense (Brasília), 09/08/2006