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Nação goitacá

 

A reedição do primeiro romance de José Candido de Carvalho, feita agora, joga-nos de volta ao fim dos anos 30, quando a ficção brasileira dava inesperadas reviravoltas, no encerramento de uma das décadas mais novidadeiras da nossa literatura. Aquele "Olha para o céu Frederico!" vinha marcar uma verdadeira mudança de rumo.


Se o nome do autor era "Cândido", aparecia também como o próprio personagem "Candide" do século XX, e poucas épocas do homem precisaram tanto de um símbolo como o de Voltaire.


Veja-se a data: 1939. A guerra ia começar. Tudo ia mudar. Afinal, talvez só reste ao cândido - com o minúsculo - olhar para o céu. Com esse livro, impunha José Cândido o seu nome como verdadeiro representante da nação goitacá.


Faz-se mister notar que, entre as muitas nações que nos formam, mostra-se a goitacá, numa posição toda sua. Pois, como povo capaz de ir além de si mesmo e de representar um momento do homem, somos um largo e contraditório aglomerado de nações.


Da nação baiana, muito sabemos. Da nação mineira, temos livros e estudos. A nação amazônica é um mistério por desvendar. A nação gaúcha faz parte das que, vez por outra, ascendem ao poder central. A nação paulista vem comandando o avanço brasileiro e absorvendo o espírito do País. A nação do Oeste mantém a iniciativa desbravadora dos bandeirantes.


A nação pernambucana revela, a cada instante de nossa história, a sua força nacionalista. E há também nações dentro de outras. Poder-se-ia falar numa nação das Gerais e numa nação de Minas. A própria Zona da Mata mineira pertenceria mais à nação da vertente do Paraíba, cuja margem esquerda, povoada no início por Coroados e Puris, se distinguiria da planície em que o Paraíba se escoa e onde os Goitacás exercitavam seu viver e vida.


Se Guimarães Rosa foi o narrador das Gerais, tivemos sempre em José Cândido de Carvalho o cantor da nação goitacá. Diga-se que a larga região de Campos do goitacás dispõe das características próprias no mosaico nacional brasileiro. Como definí-las?


Aos nove anos de minha idade, menino da margem do Paraíba - Ubá, Piau, Juiz de Fora, Muriaé, Pomba, Visconde do rio Branco - mudei-me para Campos e, sem o saber ainda, mergulhei fundo na cultura goitacá. Encontrei-me então - eu, aluno do colégio Bittencourt, não muito longe do Fórum campista - com aluno do Liceu, localizado no outro lado da praça. Era José Cândido. Ali começariam nossa camaradagem literária e nosos debates sobre livros.


Aquele que viria a criar "Olha para o céu, Frederico!" e, bem mais tarde, "O coronel e o lobisomem" exibia, desde o começo, as características da nação goitacá. Repito: como definí-las?


O que mais aparece, no contexto de uma cultura que se movimenta para cima, é a independência. O goitacá combate a sujeição. Não fora Campos a terra de Benta Pereira, José do Patrocínio e de Nilo Peçanha. Não houvera passado nela sua juventude o cearense Raimundo Magalhães Jr., independente como ninguém.


Contudo, empurrando e sazonando seu espírito de independência, há, no goitacá, um extraordinário senso de humor. Essa mistura - difícil, porque a independência leva ao maniqueísmo que, por sua vez, é inimigo do humor - transforma a cultura goitacá num componente de provocação no contexto brasileiro.


Em tudo - no estilo, na linguagem e na língua, nos significados e no ritmo - "Olha para o céu, Frederico!" e "O Coronel e o lobisomem", sendo puros produtos goitacás, sacodem e provocam o manso quietismo de uma vasta faixa da cultura brasileira.


O quiproquó vocabular dos cômicos e palhaços integra um espírito geral de zombar das coisas, essencial para a descoberta de que o rei está nú. Pois dizer que o rei está nú, é preciso. Como rir é preciso: não há seriedade possível sem a capacidade do riso. Nisto residiu também o motivo do impacto que a obra de José Cândido significou para o Brasil.


Apesar das modificações, inclusive literárias, dos últimos 63 anos, de 1939 a 2002, nitidamente provocante continua sendo a obra de José Cândido de Carvalho, no seu estilo firme e terno, eminentemente novo, e eterno. Esta edição de "Olha para o céu, Frederico!", de José Cândido de Carvalho, da Editora Rocco, é a oitava desde a primeira, da Editora José Olympio, e aparece com capa de Lula.


 


Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em 10/04/2002

Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro - RJ) em, 10/04/2002