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Miguel Reale, poeta

 

Eis um lado que vale a pena lembrar de Miguel Reale, que há pouco nos deixou, o do poeta. Que o foi. Não só em trechos de seus ensaios de filosofia como no livro sobre Kant que publicou em 1936 - mas também num livro bem mais recente, de sonetos, que se chamou precisamente "Sonetos da verdade".


ÉO que primeiro me chamou a atenção no volume foi a palavra verdade no título de um livro de poemas. Vivíamos num tempo de manuseio da verdade e da utilização de mentiras capazes de servir a fins geralmente políticos, o que levou muitos de nós à obra de George Orwell como o defensor por excelência da tese de que a verdade não pode ser manuseada, sob pena de provocar sofrimentos, individuais e sociais, que duram gerações.


De minha parte, tenho dois livros em que acentuo a importância da verdade em análises literárias, um de críticas de romances que se chama "A verdade da ficção" e outro, de ensaios sobre poesia, intitulado "A invenção da verdade". Foi, por isso, com interesse desusado que me aproximei do livro de poesia de Miguel Reale. Ali estava o mestre do Direito e da Filosofia que procurava o soneto - a mais poética das formas poéticas - para nele se exprimir com palavras e ritmos.


Toda a poesia é a sua verdade, afirma Reale em breve apresentação do livro. Divide-se o volume, depois de dois sonetos introdutórios, em cinco partes, todas subordinadas à palavra verdade. Virtudes da verdade, Verdades cruzadas, Verdades de nosso tempo e Verdades de todo o tempo.


Na Verdade das coisas, começa Miguel Reale com um soneto dedicado à água, "a irmã água, São Francisco de Assis da natureza", em cântico líquido "Mil modos inventamos para sujar-te/ com esterco, detritos e ferrugem/ mas eis-te pura convertida em nuvem". Num último verso - "tens a virtude de manter-se pura", contrastando a força do "t" três vezes com a macia cadência do verso seguinte em que define a água "Fugindo-me entre os dedos, brincalhona".


Ao longo do livro, pode-se detectar a existência do tríptico ethos-logos-pathos que Harold Bloom usou no exame da poesia de Walace Stevens. Ethos não seria apenas a ética normal, embora também ela, como logos não estaria só na forma vocabular, nem pathos seria apenas paixão e emoção. Numa tentativa de explicar às vezes o inexplicável, Bloom sugeria que ethos fosse uma ética além da ética, logos, a palavra além da palavra, pathos, a paixão além da paixão.


O que espanta, na poesia de Miguel Reale, é o chegar ele - sem ter sido um poeta de produção permanente - a uma poesia de excelente nível, que poderia ser tida como inserida na classificação de Bloom. Dominando a palavra, pôde ele unir o poeta ao analista do pensamento. Destaque para o soneto a Rachel de Queiroz e o dos Bandeirantes, entre outros como o soneto nº 15, o nº 83, que procuram levantar verdades da história ao mesmo tempo em que se concentram em versos sobre verdades do pensamento.


Sonetos da verdade vem a ser um complemento e um contraste, se comparado com um dos mais importantes livros de filosofia de Miguel Reale, "Verdade e conjectura". O que em ambos prepondera é a preocupação com a verdade.


E o título, já que lhe foi várias vezes atribuído de ser "a mais robusta organização de filósofo que o Brasil conheceu até hoje", combina em tudo com o talento igualmente poético que revelou possuir, plantado no mistério da verdade e de sua clara transparência, de um autor cujo pensamento é básico para a formação de uma sociedade aberta que faça do Brasil uma terra de gente realizada.


Nas Breves Palavras que escreveu para este volume de versos, afirma Reale que "a poesia é também uma forma de conhecimento, tão legítima como a filosofia ou a ciência, mais próxima daquela do que desta", inclusive porque "a verdade não foge ao jogo das perspectivas e das alegorias".


"Sonetos da verdade" é uma edição da Nova Fronteira, capa de Victor Burton. Orelhas de Fidelino de Figueiredo, Cassiano Ricardo, Jorge Amado e Cândido Mota Filho.


 


Tribuna da Imprensa 25/04/2006

Tribuna da Imprensa, 25/04/2006