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Merquior: um grande ensaísta

 

Pude ver o nascimento intelectual de José Guilherme Merquior (1941-1991) nos idos do Jornal do Brasil, quando ele já era precocemente bem aparelhado e perceptivo. Hoje se diria esperto e antenado. A partir daí, ele foi construindo uma obra crítica de importância exemplar.


O seu itinerário é múltiplo e aberto. Começou talvez pela estilística, no esforço de compreender o fenômeno literário a partir da sua razão interna. Em seguida, poucos sabem que ele teve um pequeno período lukacsiano, quando escreveu, na revista Cadernos Brasileiros, de Afrânio Coutinho, um artigo intitulado Contradições da vanguarda, sob influência de Lukacs. Eu sempre insistia com ele para que reunisse em livro esse artigo, que considero preciso.


Depois, José Guilherme passou por Frankfurt. Graças a Frankfurt, escreveu um belo livro, que se chama Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamim, publicado pela editora Tempo Brasileiro. Havia nele um sotaque heideggeriano, que o foi incomodando cada vez mais. Então, surpreendentemente, não foi Marx quem retirou José Guilherme de Frankfurt. Foi Heidegger. Mas esta é outra história.


Em seguida, José Guilherme se dirige a Paris, que encontra sob a égide do estruturalismo. Escreve uma tese intitulada A estética de Lévi-Strauss, também editada pela Tempo Brasileiro. Ele era, dentro do estruturalismo, uma figura independente, como sempre foi, e insubordinada. Ficava com Lévi-Strauss e não com o estruturalismo, e menos ainda com Foucault, sobre quem escreveu um livro com êxito internacional: Foucault, o niilismo de cátedra. Publicou, também pelo Tempo Brasileiro, O estruturalismo dos pobres.


Esse itinerário aberto, diversificado e múltiplo não poderia deixar de passar por Londres, onde estabeleceu um diálogo, e provavelmente um pacto, com o racionalismo popperiano, evidentemente rebatizado por Gellner e por Dahrendorf. Dessa época, de predominância do racionalismo, há também um livro seu, que é uma visão bastante crítica do pessimismo frankfurtiano, intitulado O elixir do Apocalipse. A palavra astúcia aparece no seu segundo livro, A astúcia da mímese. Era esse o José Guilherme de A astúcia da mímese, substituto de a Razão do poema, que já era livro de um escritor maduro e de um ensaísta dotado de compreensão crítica fora do normal.


Aí, José Guilherme nos oferece interpretações emblemáticas insuperáveis, inicialmente de Gonçalves Dias, com uma leitura precoce, atilada e criativa da Canção do exílio e, depois, de Machado de Assis, no volume da pequena história da literatura brasileira, que ele veio a publicar, De Euclides a Machado, reeditado recentemente pela Topbooks. É um livro referencial. Acho difícil alguém percorrer a literatura brasileira sem recorrer a esse livro.


José Guilherme chega ao Modernismo identificando as suas derrapagens. Chega à primeira geração de 22, poupa criticamente a de 30, mas não poupa a de 45, que ele chama de ''degeneração de 45''.


Vai progressivamente avançando e deixa sua compreensão ampla da arte moderna em um livro chamado Formalismo e tradição moderna. Os poetas, que não seriam apenas modernistas, mas modernos - no sentido de que a modernidade é mais do que o Modernismo - são Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes e João Cabral de Melo Neto.


Sobre Drummond, ele escreveu uma tese, chamada Verso e universo em Drummond. Sobre João Cabral, lançou o conceito de ''o clássico moderno'' - de alguém que, sendo moderno, retomava algumas linhas da força de um período que foi não apenas antigo, mas perene. Com essas linhas de compreensão, José Guilherme nos ofereceu uma leitura modelar da literatura brasileira. Não acredito que se possa reler a literatura brasileira e a modernidade sem recorrer aos seus textos, extremamente atuais.


Lembro, finalmente, uma frase de José Guilherme, justamente na introdução à Astúcia da mímese: ''O autor compõe. O público interpõe. O crítico decompõe. Mas a obra dispõe''.


Eu diria que a obra dispôs que José Guilherme Merquior fosse um dos mais lúcidos ensaístas da história de nossa cultura.


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro) 22/2/2006