Há menos de um mês, em encontro organizado por Cândido Mendes de Almeida em Paris, coube-me falar na Sorbonne, sobre "O romance no Brasil". Depois de uma introdução rápida sobre as raízes da arte de narrar, estudei a obra de dois narradores seminais da nossa literatura - José de Alencar e Manuel Antônio de Almeida - fixando-me, em seguida, em Machado, Raul Pompéia e Aloísio de Azevedo, para chegar a Rachel de Queiroz, Jorge Amado, Graciliano, Adonias, Lúcio Cardoso, Otávio de Faria, Clarice Lispector, Cornélio Pena, João Guimarães Rosa, Érico Veríssimo, José Sarney, Ciro dos Anjos, Antônio Calado, Ariano Suassuna, Nélida Pinõn, Inácio de Loyola Brandão, Campos de Carvalho.
Falei também sobre Wanda Fabian, descoberta do Prêmio Nacional Walmap e autora do romance "Avesso e direito" que, lançado em 1968, foi então considerada pela mídia - por artigo meu, inclusive - como a grande estréia da ficção brasileira naquele ano. Depois dessa publicação, lançou a romancista mais 12 livros de narrativas, além de ter escrito novelas de rádio e peças de teatro. Seu mais recente romance é este "A confidente da morte" .
No livro de há 67 anos, duas amigas. Helena e Ângela, são o avesso e o direito, isto é, duas pessoas diferentes que se entrelaçam como se uma completasse a outra. No romance de 2005, lida com estranha personagem que nasce com o dom - ou que outro nome tenha essa vidência - de ver a morte no rosto dos outros. Não a vê apenas porque sente, ao mesmo tempo, um cheiro que emana da pessoa e que é o cheiro da morte. O primeiro aspecto positivo de seu romance é a devassa que promove no mundo do pensamento e da percepção da mulher.
Divide-se a história em quatro capítulos ou fases: "A menina", "A cortesã", "O anjo brando" e "A amorosa". Um dia a vidente da morte vê-se também marcada. Descobre em seu rosto, em sua pele, até em seu cheiro, que a morte a escolhera. Essa constatação acontece no momento em que está cheia de amor e a certeza de que é amada. A intensidade contida nas páginas finais da narrativa mostra a força da narradora, que não se detém diante de qualquer palavra ou cena, já que deseja dizer tudo, ir até o fim na sua busca do que mais fundo e limpidamente trágico possa existir nos atores que vivem suas próprias vidas - já que não existem outras.
O tom geral de "A confidente da morte" é de realismo. Contudo, a romancista não se preocupa em manter o tempo todo esse realismo, inclusive porque foge de qualquer esquematismo no criar seus personagens. Voltando aos capítulos - a menina, a cortesã, o anjo branco, a amorosa - Wanda Fabian como que define possíveis estágios, etapas reais ou momentos psicológicos. Como estrutura de romance, o livro é firme e coeso. Não sendo ligado a uma narrativa na primeira pessoa, ganha de vez em quando esse caráter, o que torna o escoar do enredo como tendo maior força e precisão.
Quando se pensa que o clímax da historia chegou, a autora a eleva a um novo ápice e tudo se junta para formar antro ponto culminante da narrativa e, num jogo de clímax e contra-clímax, como tema e antítese, ação e reação, todo o arcabouço do enredo se ergue e impõe sua presença e justifica seu mundo. Existe uma verdade na ficção, verdade que se fixa também no modo como o narrador usa suas palavras no contar uma história.
Mantém Wanda Fabian uma fidelidade ao jeito de narrar do brasileiro de vivência que se estenda do Rio de Janeiro, numa expansão que vai até o Sul capichaba, a Zona da Mata Mineira e a vertente paulista do Rio Paraíba. As palavras que a romancista usa são as de sua gente, as deste Português vivo, que manteve usanças vocabulares antigas e, ao mesmo tempo, engenhou novos modos de empregar palavras. Wanda Fabian foi buscá-los num país que já inventou novos meios de falar e de escrever, e elas vêm de leitos diferentes de escoamento. Cabe ao escritor ir apanhá-las em sua pureza de nascença, suas faíscas significantes, sua inteireza de sentidos.
No fundo, "A confidente da morte" tem o estilo de Wanda Fabian, mas surge também com um estilo novo, apropriado ao assunto de uma jovem que vê a morte sob a forma de uma cruz negra na testa de pessoas que a circundam, o que transforma o território ficcional do livro num esperado/inesperado modo de ver quem será o morto próximo ou quais serão eles já que, de vez em quando, a moça vê grupos de pessoas, em que todas mostram essa marca infalível da morte.
Escrevendo sobre livro anterior de Wanda Fabian, usei as seguintes palavras: "Os personagens de Wanda Fabian soltam-se em seus livros com uma liberdade total de ação e de sons, no que se poderia chamar de minúcia descritiva, como se a romancista assumisse o papel de intérprete da condição humana. Possui também um estilo forte capaz de levar avante o que haja de totalmente dramático numa situação dada".
"A confidente da morte", de Wanda Fabian, é uma edição Novo Milênio. Coordenação editorial de Walter Duarte. Editoração eletrônica de Ito Oliveira e Wellington Lopes, digitação de Jéssica Soares de Souza. Capa e ilustração de Lígia Vieira de Castro, revisão de Gislene Guimarães.
Tribuna da Imprensa (Rio de Janeiro) 26/07/2005