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A língua dos vencidos e dos vencedores

 

Escreveu um texto belíssimo sobre a palavra, Eduardo Galeano:"O Paraguai fala o idioma dos vencidos (o guarani). E a coisa mais estranha ainda: os vencidos acreditam, continuam acreditando, que a palavra é sagrada, porque ela revela a alma de cada coisa. Acreditam os vencidos que a alma vive nas palavras que a dizem. Se eu dou a minha palavra, me dou."Isso deve também suceder com a língua dos vencedores, porque sagrada persiste sendo a palavra. Sombra da grande Palavra que fez o céu, a terra e as estrelas. Sombra daquele que é a Palavra.

E é essa matéria comburente do poeta e do romancista. Capaz de criar uma nova realidade. Porque a alma é palavra. Os árabes creem que sua alma está na ponta da espada. Nós cremos, sendo a espada, palavra, que nossa alma está na ponta da palavra. Por isso o provérbio levantino:"A palavra que falas é tua senhora e a palavra que reténs é tua escrava". Quando falamos amor, é o amor que sai de nós e se concretiza. Somos as nossas palavras, não  podemos escapar delas. Daí a responsabilidade num mundo em que a palavra não é cumprida e até as assinaturas dos documentos são discutíveis. Nossos antigos honravam a palavra e muitos dos contemporâneos não a respeitavam, por não se respeitarem.

A história é uma palavra que se recorda  de si mesma. Por haver vivido um tempo e por não ter esquecido o que viveu. Foi da memória que a tradição se alimentou. Ou entre os povos, do milagre da oralidade que se confiava na memória dos anciãos. Tanto que alguém referiu que "ao morrer um desses anciãos da aldeia, morria com ele uma biblioteca". Todos somos bibliotecas de acontecimentos que não se repetirão, por sobreviverem conosco. O poeta é um historiador dos seus sonhos e o historiador, um poeta que luta contra o esquecimento das palavras na história. Que deve ter muitos olhos e muitas vozes. As das gerações.

Diário da Manhã, 20/4/2011