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A invenção da verdade

 

A percepção e a análise do poema surgem como indicações indispensáveis para que a poesia acabe sendo uma invenção da verdade, ou a invenção de pequenas verdades que, por momentos, elevem o homem acima de sua contingência. Ao dar, já lá se vão quase 25 anos anos, o título de "A invenção da verdade" a um livro meu com ensaios sobre poesia, revelava minha convicção de que a poesia feita num país é o retrato mais seguro para avaliar esse país como digno de atenção e respeito. É o caso de se dizer que um povo que produziu uma "Invenção de Orfeu" pode ter certeza de que ultrapassou os limites da mediania e que o autor, Jorge de Lima, inovou o idioma falado por esse povo para dizer que ele existe.


Assim procuro ver a analisar a poesia de minha terra e de meu tempo como base do que fomos e representamos. E é com esse espírito que trato hoje de um poeta, Fernando Félix de Carvalho, que usa o nosso idioma de maneira pessoal e com um claro domínio da palavra poética e do ritmo que adota. O livro, a que deu o título de "Viagem", solta seus versos como quem traça rumos e busca entender as palavras que são o instrumento do avanço, a base do entendimento, a que não está alheio, inclusive, o jogo das próprias palavras. Como nestes quatro versos: "Alguma coisa em mim/ Eterna/ Mas outra maior/ É terna."


A linguagem capaz de contar a verdade segue com mais direiteza o tamanho do verso do que a largueza da prosa. Nos livros religiosos, a começar pela Bíblia, temos o hábito de usar a palavra "versículo", numa ligação com o verso que deseja pregar e não apenas agradar. Daí o concluirmos que não cabe à poesia agradar, mas, sim fazer o possível para chegar à alma das coisas e das pessoas.


Assim, os versos se vestem de palavras comuns, às vezes com um esforço de romper o silêncio que, apesar de tudo, volta a dominar e leva o poeta a se agarrar de novo a palavras normais, corriqueiras, porque talvez sejam elas a última saída para chegar ao mistério. Mistério e destino são duas palavras que a poesia de "Viagem" pega, como o destino da rosa neste poema: "A rosa que se abre para o mundo/ Age para que alguém a veja/ Alguém particular/ Para ser lembrada num poema/ Evocada durante os a tos do amor/ Ou acariciada/ Em meio aos imensos suspiros do mar/ Só assim ela cumpre seu destino/ E vive a faina eterna/ Completa, cúmplice, liberta."


Se escolho as palavras "invenção da verdade" ao longo desta análise é porque há poetas que se ligam a essa demanda. Usei-as a primeira vez para falar sobre a poesia de Mário Quintana, cuja obra nos leva a aceitar a forma poética em toda a sua força de chegar a uma verdade imediata das coisas bem como à verdade não tão imediata do homem que lida com as coisas, e que ao fazê-lo, pode criar um poema com estas palavras de Fernando Félix Carvalho que aparecem sob o titulo de "Antes que seja tarde":


A paisagem chorando além dos vidros/ Só mostra um lado do mundo/ E a poeta não tem outro caminho/ Senão desbravar o imperfeito/ deitar na chuva suas mãos/ E torná-las gelo/ Predizer a rotação dos pecados/ E anunciar a purificação dos condenados/ Seguir a trajetória das formigas/ Estilhaçar as vidraças deste tempo/ Sabendo que todos os tempos têm vidraças/ E que o cansaço pode chegar/ Antes da repugnante certeza."


Ao mesmo tempo em que atira suas palavras contra a tranqüilidade normal de uma frase, atinge o poeta, em outros versos, um lirismo de serena feitura. Como neste "Canção de ninar a filha". "De onde você veio/ Menininha?/ De qual asteróide?/ De qual estrelinha?// Me conta, me conta/ Menina linda/ Eu sei de tantas coisas/ Mas disso não sei ainda// Me conta, me conta/ Me conta esse segredo/ Me conta longo, menininha/ Senão eu vou ficar com medo".


Antes de terminar seu livro, Fernando Félix Carvalho pede licença a Fernando Pessoa para fazer a seguinte quadra:


"O poeta é um fingidor

Finge tão completamente

Que chega a fingir

Que é gente".


Viagem é lançamento da Nitpress (Niterói). Prefácios de Manuela Nogueira, Carlos Menezes e Antonio Carlos Vilaça. Capa de Janete Ribeiro da peça Isadora, bronze de Chiparus. Fotos de Maria do Carmo Carvalho.


Tribuna da Imprensa (RJ) 2/10/2007