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A IA e a banalização da arte

 

Em meu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, evoquei a Convenção sobre a Diversidade Cultural, aprovada há 13 anos pela Unesco por maioria esmagadora de delegações. Na oportunidade, ressaltei a importância daquele marco jurídico internacional, graças ao qual todos os povos, alguns confrontados com o rolo compressor de certas culturas ditas dominantes, seriam protegidos e respeitados em suas diversidades. Uma considerável mudança, dado o panorama anterior — sujeito às mais variadas (e invasivas) formas de apropriação. Minorias culturais que, em certos casos, sobreviviam a duras penas no Primeiro Mundo também se sentiram amparadas.

Como escritor, estou ciente dos efeitos positivos que a inteligência artificial possa trazer na área da ciência, da tecnologia e em diversos campos do conhecimento. Mas escrevo também da perspectiva de um artista preocupado com os efeitos adversos que poderão incidir sobre a relação, a um tempo delicada e estreita, que todo criador forçosamente mantém com sua arte. A tal ponto que, por vezes, me pergunto se não seremos parte da última geração a levar adiante uma prática existente desde que o mundo é mundo e a arte é arte: o corpo a corpo entre o criador e sua obra.

Nessa relação estreita, conflituosa e amorosa entre um autor e seu trabalho existe todo um milagre que dá origem a determinado resultado, seja ele romance, composição musical, obra associada ao campo das artes plásticas, da dança ou de qualquer outra manifestação no âmbito artístico. Tal prática exige do criador, antes de mais nada, o mais profundo recolhimento.

Sem isso, o impulso original, a ideia que, no limite, antecede de pouco a própria obra, não tem condições de aflorar e florescer. Mais importante: sem as dúvidas, os retrocessos, as experimentações; sem os receios e hesitações tão comuns quando da construção de um enredo ou de uma linha melódica; sem os equívocos, que também fazem parte, sem as idas e vindas, sem as noites mal dormidas, nada ou muito pouco acontece que corresponda à verdade pessoal de um criador. É isso que a inteligência artificial matará no berço, como grande facilitadora que é. Pois não é outra sua função, fora facilitar, agilizar, ganhar tempo, atingir determinado objetivo.

Mecanicamente.

Qualidades que, como mencionei, tornam seus préstimos de indiscutível valor noutros campos do conhecimento. Mas que podem ser fatais para a simbiose que se dá entre o artista e sua obra. O artista não precisa de facilitadores. Muito menos de um grilo eletrônico que sopre em seu ouvido a melhor trilha a seguir em algum enredo ou linha melódica; ou enumere opções envolvendo cores a empregar em telas que se mantêm brancas à espera de uma decisão. O mot juste de Flaubert, a palavra exata, não pode ter outra origem que não a inspiração do próprio autor.

Sem falar nos aspectos mais nocivos dessa inovação: as manipulações no âmbito tecnológico que nos farão escutar, em breve, a décima sinfonia de Beethoven ou ler o mais recente romance de Machado. Bastando, para tanto, que a ferramenta mágica degluta as nove sinfonias anteriores do celebrado compositor ou percorra a obra inteira de nosso escritor maior, para dela extrair a novidade literária do próximo Natal.

Não apenas nossas diversidades culturais serão ameaçadas. E nem apenas o artista. Mas a arte como um todo. Reduzida, aqui, a diversão ou curiosidade. Tampouco existirá um cenário em que sejamos confrontados, com tamanha intensidade, à banalização da arte.

Não tenho a pretensão de ser o primeiro a levantar o assunto. Mas nada li a respeito, até aqui que me tranquilizasse. Pelo contrário: a esse respeito, em meio a tanto ruído, reina o silêncio.

Edgard Telles Ribeiro é escritor, diplomata aposentado e integrante da Academia Brasileira de Letras

O Globo , 08/07/2025