Aqueles que acompanham as discussões mundiais em torno da transição para uma economia de carbono neutro estão assistindo a uma verdadeira guerra, sobre as avaliações do futuro do mercado de combustíveis fósseis. Aquilo que vinha sendo o exercício de estudos econômicos, em ambiente de estabilidade técnica, se transformou em conflito de gigantes.
Em setembro, Fatih Birol, o diretor executivo da Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês), a referência mundial do setor, deu uma entrevista afirmando que o pico do consumo de combustíveis fósseis estava se aproximando. Sugeriu, também, que analistas de investimentos olhassem com mais cuidado os projetos do setor, em razão da falta de perspectivas da demanda.
O anúncio aconteceu no momento em que a Opep, a instituição central dos produtores de petróleo, se reunia em Calgary, a cidade canadense que sedia os maiores negócios do setor no país. A reação dos participantes foi muitos tons acima do normal. O secretário-geral da Opep, Haitham al-Ghais, rebateu em tom de guerra: “A IEA é dirigida ideologicamente e está tentando desestabilizar a economia mundial. Essas narrativas podem levar a uma falência generalizada no setor de energia, criar o caos numa escala sem precedentes, com consequências dramáticas para as economias de todos os países e a vida de bilhões de pessoas”.
Das entrevistas divergentes para os dados contraditórios foi um passo rápido. Em outubro a IEA publicou seu relatório anual sobre o mercado de petróleo. A projeção mais importante era a de que o rápido crescimento de fontes alternativas, especialmente no setor de transportes (com os carros elétricos à frente, mas não apenas), permitia projetar um pico do consumo para o período entre 2026 e 2028. A partir daí, viria o declínio.
A reação da Opep foi imediata. Dias depois, publicou suas próprias projeções. O suposto principal é o de um crescimento firme do consumo, ao menos até 2045. O dado mais surpreendente do estudo era o de apontar um crescimento de 6 milhões de barris por dia neste ano, em relação às próprias projeções da entidade de um ano atrás.
Com as mudanças dos dois lados, aquilo que era um cenário futuro relativamente uniforme virou literalmente um abismo. Enquanto a Opep prevê um consumo de 116 milhões de barris/dia em 2045, a IEA afirma um consumo de 54,8 milhões de barris/dia em 2050.
Os estudos com essas diferenças monumentais de projeção caíram sobre as mesas de todos os analistas que avaliam projetos de novos investimentos em campos de petróleo, gasodutos, refinarias e quejandos. Ainda antes delas, a vida desse pessoal não andava fácil.
Mesmo com a alta de preços provocada pela guerra na Ucrânia, o setor de petróleo não recebia uma avaliação positiva dos grandes financiadores de projetos. Em maio deste ano, o maior deles na Europa, o BNP Paribas, já havia anunciado publicamente que estava deixando de financiar projetos no setor. Mais ainda, afirmou que iria reduzir sua exposição ao setor em nada menos que 80% até o fim desta década.
Como outros bancos europeus estão seguindo o mesmo caminho, embora mais discretamente, o financiamento do setor de petróleo está a caminho de se tornar basicamente em negócio dos países produtores – com os EUA, o maior produtor mundial, à frente.
Em meio a toda essa tensão, a Sinopec, a maior petrolífera chinesa, anunciou que o consumo de petróleo na China não vai crescer em 2023 – e não afastou a possibilidade de que este ano talvez seja aquele do pico histórico do consumo no país.
Para tornar a situação mais crítica, os números de desempenho do setor que os analistas olham também não ajudam. Há cinco trimestres os preços e os lucros do setor estão em queda – um fenômeno muito anterior ao da guerra de projeções. Passado o pico da alta providenciada por Putin, parecem estar voltando os problemas de longo prazo do setor. Nem Israel foi capaz de provocar, até agora, uma mudança na tendência.
A roda do petróleo é cara. Muitas empresas, especialmente aquelas que extraem a partir do xisto nos EUA, têm custos elevados: qualquer abalo para baixo nos preços, como o acontecido em 2020 com a covid, leva muitas ao limiar da falência.
É este o fantasma acordado pelo relatório da IEA – e descrito graficamente pelo secretário-geral da Opep. Um setor que já vinha encontrando dificuldades para financiar novos projetos começou uma guerra de números e projeções, sem conseguir evitar o essencial: confirmar que o monopólio na matriz energética mundial está sob risco – e, com ele, a estrutura cartelizada do negócio. Uma reação imediata ao novo cenário foi a maior concentração no setor, com empresas maiores comprando as menores, numa tentativa de apresentar números sólidos para os financiadores.
Este é o cenário mundial do momento em que a Petrobras apresenta um projeto de expansão no setor. Já perdeu seu maior financiador internacional, o BNP Paribas. Mas é empresa que sempre pode safar seus prejuízos de negócios com apoio do maior acionista. Desse modo, ainda tem chances. Mas terá resultados, num tempo em que as projeções de mercado se tornaram quase loteria?