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A força da palavra

 

Atingiu a crônica brasileira, desde Machado de Assis, tal nível de feitura e tal variedade estilística e vocabular que parece impossível aparecer entre nós um cronista novo. Pois apareceu. Chama-se Tácito Naves Sanglard e acaba de publicar um livro chamado "Palavra contida: (outras crônicas, algumas poesias)". Sua crônica tem marca pessoal, em nada se parece com os mestres do gênero entre nós, uma Clarice, um Paulo Mendes Campos, um Rubem, uma Elsie Lessa, um Drummond (que o foi também, e dos melhores).


Lendo agora a crônica de Sanglard, nela vejo um talento especial no comentar poeticamente o prosaísmo do dia-a-dia, fazendo com que suas crônicas (embora subordinada, como toda crônica, ao cronos grego e ao tempo, que tudo absorve), façam também parte da arte da narração em que o tempo ganha sua justificativa.


Sob esse aspecto, a crônica "A mesa de centro do escritório do meu avô" é exemplar, inclusive como prova de mea culpa real por não ter feito o possível para deixar-lhe um mundo melhor. Existe sempre o perigo de que o Atlântico se levante de repente e engula Copacabana. Há alguns anos soube de um grupo de moradores da praia famosa terem resolvido comprar casas em Santa Teresa a fim de estarem a salvo da inundação futura.


O volume reúne também poemas, em versos que formam com naturalidade, às vezes cânticos de amor, como neste "O cofre": "Cada foto sua,/ cada fato, cada fita,/ cada história, eu tenho aqui/ guardada,/ trancada em um cofre,/ que mais se assemelha a um coração./ Cada gesto seu,/ cada caso, cada feito,/ cada trama,/ cada enredo,/ eu trago aqui fechado/ como se fosse um sonho,/ esclarecido, definido,/ determinado,/ demarcado,/ como cada foto sua,/ como cada fato,/ como a maior história".


O poema que dá o título ao livro mostra a permanente luta mantida pelo escritor com a palavra, numa repetição da luta do personagem bíblico face a um anjo, num embate em que não há quase vencedor:


"A palavra certa e/ pendente,/ contida e/ ajustada na ponta da língua,/ eu não falo,/e se encontra nunca/ no dicionário perfeito, e/ se nota pouco no compêndio correto,/ reluzente e luzidio por roçar/ o livro menor,/ comprimido tanto/ na estante iluminada/ de mero apoio./ A palavra correta é/ sempre rara no trato,/ fugaz, fugidia, sestrosa,/ constrói o tema e/ faz o verso perfeito,/ e ainda se preciso,/ querendo,/ derruba líder malfadado/ da palavra duvidosa,/ de procedência incerta,/ e acredito, após,/ mesmo que as vozes do verbo/ perdurem, por certo tempo,/ será reflexivo,/ e sua lembrança,/ subjuntiva".


Nas crônicas, também sua busca da palavra que vai além de si mesma dá uma dimensão diferente aos casos que narra e às figuras que descreve. Como a de Estefânia, que surge viva de suas páginas. Numa delas, mostra que a falta de um espaço pode levar uma pessoa a "vaiar" Roma, quando sugere que a frase "Quem tem boca vai a Roma" pode ser também usada assim: "Quem tem boca vaia Roma".


Em prefácio que escreveu para o livro de Tácito Naves Sanglard, acentua Marcos Vinicios Vilaça: "Síntese dessa visão ampla no tempo e no espaço é a aproximação entre duas citações feitas pelo autor, dois pensamentos sobre um dos assuntos que ele mais retoma, o trabalho, essa coisa que se, por um lado, representa todo o esforço humano em mudar a natureza e a própria vida, por outro é lembrada por alguns como a maldição do Gênesis, onde parte do castigo de Adão seria passar a ganhar seu sustento com o suor de seu rosto.


Dando uma resposta às duas visões, e unindo para tanto dois pensamentos muito afastados no tempo e no espaço, Sanglard cita a simples e cristalina frase de Amador Aguiar, "só o trabalho pode produzir riquezas", bem perto da fascinante máxima confuciana de que basta você escolher "um trabalho que você ame e não terá que trabalhar um único dia em sua vida". Em "Palavra contida", em suma, o leitor encontrará as mais variadas reflexões de um homem para quem, como para Terêncio, nada do que é humano é estranho."


Nenhum outro assunto supera o da palavra na avaliação de um escrito. Quando analistas ingleses contaram o número de palavras usadas por Shakespeare em suas obras (perto de 10 mil) tinham razão em apresentar esse resultado como prova de superioridade.


Essa tendência para o cultivo da palavra seria suficiente para chamar atenção dos leitores para a "Palavra contida". "Palavra contida: (outras crônicas, algumas poesias)", de Tácito Naves Sanglard é lançamento da Forense Universitária, capa de Mello & Mayer e editoração eletrônica de Rio Texto.


Tribuna da Imprensa (RJ) 4/12/2007