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Falta cultura à educação

 

A comunidade acadêmica e a sociedade acompanham atentamente o debate sobre o problema da universidade brasileira hoje. Regimes de parceria e de negociação se impõem a todo instante. Estou certo de que a discussão dos nossos dias se destina não tanto a passar a limpo os desvios do percurso, porém a elaborar conjuntamente um manual de ação, matizado, conseqüente, timbrado urgente, urgentíssimo.


I


As dificuldades do nosso ensino vêm de longe. O grave é que, em vez de encontrar saídas sensatas, o impasse persiste e se agrava. O processo educacional brasileiro registra nos nossos dias um volume inusual de perturbações de todo tipo. Valores materiais e pós-materiais colidem o tempo todo. Tensões e riscos tornaram-se companheiros de viagem. De um lado cabe interromper a lamúria e do outro alargar o horizonte de expectativas, ampliar alianças, cobrar do Estado o seu compromisso de mediador social. O programa educacional reflete o projeto nacional de Estado, mesmo que esse Estado esteja na alça de mira da governança global. A universidade não está imune a esse jogo perigoso. Nem as quotas de desigualdade que se alastram.


As últimas estatísticas, inclusive as do IBGE, não nos tranqüilizam quanto à democratização do ensino superior. Em nenhum momento conseguimos aperfeiçoar as formas de acesso, preferindo preservar o anacronismo do vestibular. Mesmo com a explosão demográfica do ensino superior privado, é ainda inquietante o tamanho da exclusão universitária. O valor atual das mensalidades só é acessível às classes sociais A e B. Jamais à C, menos ainda à D. O mais próximo censo indica que não houve aumento no contingente de alunos de segmentos sociais mais baixos. Não há sinais evidentes de que a universidade se dedica a incluir e sustentar socialmente. Ou que eliminou ou reduziu a distância inaceitável entre produção e distribuição de saber. Nem nos apercebemos de que a formação é flexível, enquanto a profissionalização não costuma ser. Também não quisemos reconhecer que a formação acompanha as mudanças de cada dia, procura pensar as transformações, do mesmo modo em que a profissionalização, submersa no desempenho performático e na política de resultados, alimenta irresistível tendência ao imobilismo intelectual. A essa altura se pode pedir prestações de contas dessas operações contábeis, e duvidar da sua rentabilidade social e cultural.


II


Vivemos a terceira universidade, cercada de precipícios por todos os lados: saberes contestados, professores desvalorizados, alunos desestimulados, funcionários desmotivados. A primeira universidade moderna foi a da consciência e a consciência se isolou até a claustrofobia; a segunda, a do trabalho, empurrada por uma fantasiosa saída laboral. A terceira parece ser a universidade cidadã, dividida, e até cindida, entre a formação, a profissionalização, o treinamento. Nessa escala temerária, a qualidade e a pesquisa têm sofrido sérios abalos. A universidade cidadã é produtora de um conhecimento para. Para a construção social partilhada e emancipada. O cidadão inclui o profissional, e o ultrapassa. Por sua vez, ele é dotado de uma consciência comunicativa. A cidadania independentiza. Inexiste cidadania dependente. Pode existir, e houve, pensamento dependente, até sobre a própria dependência. No caso, por falta de vigor reflexivo. O pensamento independente está assistido por excepcional capacidade de adaptação a situações inesperadas. Se me fosse lícito arriscar uma paródia de Edgar Morin, poderia dizer: se até aqui ensinamos certezas, estamos atrasados no ensino das incertezas. E a incerteza é o que há de mais certo nestes tempos de cólera.


III


O trabalho educacional registra déficits culturais bastante acentuados. Falta cultura à educação. Não fomos capazes de criar indicadores qualitativos. São mais complexos, sem dúvida, porém não menos necessários. A exigência da cultura geral parece esquecida. Tampouco nos dedicamos a pensar as emergências culturais. Jamais necessitamos tanto de uma universidade argumentativa. Porque nunca na história recente estivemos tão carentes daquelas taxas imprescindíveis de criticidade. E não se diga que a inflexão generalista anula o corte vertical. Ela pode e deve acentuar a reflexividade, identificadora da universidade crítica.


IV


Nesta hora o saber terá de deslocar-se do seu ghetto monodisciplinar, para um regime de intercâmbios disciplinares altamente produtivo. Já não a unidade compacta de um saber hegemônico, e não raro imperial, porém as parcerias e cooperações inusitadas. Para fazer face às dificuldades e à complexidade crescentes, para dar nova vida ao cansaço e ao abandono teóricos. Sobretudo nesses domínios que apontam para a pesquisa regular, a recuperação da universidade pública se torna inadiável.


V


Chegamos assim às duas questões centrais, que nos acompanham sempre. Universidade: por que e como reformar? Por que reformar? Se existe impasse ou retrocesso, desestímulo e exaustão, a necessidade de reformar se torna urgente. Para que a universidade volte a ser protagonista da nossa cena pública e força motriz da construção nacional. Para isso devemos dar corpo e alma ao Art. 207 da Constituição, que prevê a autonomia programática, funcional, financeira, no encalço de novas avenidas. Como conseqüência da autonomia, a possibilidade de captação de recursos, que se juntaria ao orçamento da União: sob as formas de criação de fundos ágeis, alianças em áreas afins, sobretudo enraizando socialmente a universidade, cooperação internacional rebobinada, prestação de serviços de ponta, parcerias diversas, públicas e privadas, nacionais e estrangeiras, sempre dentro de rigorosos critérios intelectuais, éticos, sociais.


A universidade cidadã, propositiva, estará em condições de elaborar projetos que apontem para a transformação do ensino superior no Brasil, de interagir com a sociedade e com as políticas públicas em andamento. Como reformar? Por dentro e por fora. Por dentro, reprogramando e revigorando o saber. Por fora, para a democracia e a justiça social. Só que o dentro e o fora assinaram um pacto indissolúvel.


 


Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) em 14/04/2004

Jornal do Brasil (Rio de Janeiro - RJ) em, 14/04/2004