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E agora?

 

Ainda há muito a apurar nessa espantosa trama de ilicitudes e corrupção em que mergulharam o PT, seus aliados parlamentares e o governo Lula, com abundantes respingos sobre outros partidos. É imprescindível que se dê acelerada continuação aos inquéritos em curso para que se chegue a uma satisfatória conclusão a respeito de tudo o que ocorreu, com a devida responsabilização legal dos culpados e, por outro lado, para que terminem essas apurações o mais rapidamente possível, de sorte a que o país não fique, indefinidamente, por elas paralisado.


O que já se constatou, entretanto, é assustador. Ficou evidenciado que o governo Lula, o PT e seus aliados, para se assegurarem maioria parlamentar e ocorrer aos elevadíssimos gastos de sustentação de um imenso aparato político e de custosa propaganda eleitoral, se valeram, ilicitamente, de recursos públicos subtraídos de autarquias e de outras agências federais. Revelou-se, igualmente, algo de tanto ou mais grave: a mercantilização, em grande escala, de altos cargos públicos, conferidos a pessoas com absoluta independência de critérios de competência e de idoneidade, mas exclusivamente em função da medida em que os novos titulares se comprometiam, confiavelmente, a saquear bens públicos em proveito do PT, de seus aliados e do governo.


Ante essa estarrecedora situação, Lula se encontra em uma situação extremamente difícil. O "impeachment" do presidente não constitui, como tal, um objetivo perseguido pela oposição. Mas, se as apurações em curso vierem a evidenciar seu envolvimento operacional nessa trama, não há como eximi-lo das penalidades legais.


No atual estágio das coisas, entretanto, o mais provável é que ao presidente seja dada a possibilidade de cumprir o restante de seu mandato, embora em condições de completo desprestígio. É imprescindível, assim, que as lideranças parlamentares responsáveis se articulem, em cooperação com os setores responsáveis do Executivo, no sentido de assegurar ao país, durante o restante do mandato do presidente Lula, condições mínimas de governabilidade.


A questão, todavia, é muito mais ampla. O que está em jogo é o colapso de um mito e o naufrágio de uma grande esperança. O mito da desvalida retirante do Nordeste, cujo filho infante ajuda a sustentar a família como engraxate em São Paulo. O mito do homem extremamente inteligente e de bom caráter, praticamente sem escolaridade, que consegue, por seu valor pessoal, passar de engraxate a torneiro mecânico, depois a líder de sua categoria, tornando-se, em seguida, o maior líder sindical do Brasil, logrando, a partir dessa base, fundar e dirigir um grande partido, o PT, o Partido dos Trabalhadores. Esse PT se torna portador da esperança de constituir, democraticamente, pelo voto popular, um grande Brasil, autônomo, moderno, desenvolvido e socialmente justo.


E agora, quando o mito se desfaz e a esperança soçobra? Agora é preciso combinar um lúcido entendimento dos acontecimentos com uma vigorosa reafirmação de esperança no Brasil. Ademais da ampla dimensão das ilicitudes praticadas, pelas quais os responsáveis devem ser, na forma da lei, devidamente punidos, existem outros aspectos da atual situação, tão ou mais importantes.


O principal deles se refere à urgente necessidade de uma ampla e profunda reforma da legislação reguladora das eleições e dos partidos. Foram as graves deficiências dessa legislação que abriram espaço para os abusos ora constatados e, de certa forma, criaram condições que os incentivaram.


Há consenso, entre os estudiosos da matéria, no sentido da necessidade da adoção do regime eleitoral distrital, puro ou misto, e de novo e rigoroso sistema de financiamento dos partidos; da exigência de um coeficiente nacional mínimo de 5% de votos, em apropriado número de Estados, para a sobrevivência de um partido, acabando com partidos anões, que se tornaram balcão de negócios; da imposição de rigorosa fidelidade partidária; e, finalmente, de tornar legalmente obrigatória, em cada legislatura, se nenhum partido alcançar suficiente maioria, a formação de coligação de partidos para toda a legislatura, com programa e liderança únicos, de sorte a assegurar, responsavelmente, uma maioria parlamentar estável.


Adotado um apropriado regime regulador da vida política, assegurar-se-á significativa elevação do nível de nossa classe política, dos partidos e do governo. E se tornará possível uma vigorosa reafirmação de esperança ao Brasil.


Reconheçamos que Lula, por sua inteligência e personalidade, desempenhou internacionalmente muito bem a função de chefe de Estado. Sua completa falta de preparo não lhe permitiu, todavia, um exercício minimamente satisfatório da chefia do governo. E a delegação dessa função ao ex-ministro José Dirceu resultou catastrófica.


A terrível crise em que mergulhamos, entretanto, também abre novas possibilidades. Está na hora de uma grande reformulação partidária. Da emergência de um novo PT, depurado de seus vícios e de seus maus líderes, e de um mais sério compromisso do PSDB com seu projeto social-democrata. Está, sobretudo, na hora da formação de uma ampla frente democrática, reunindo todas as forças progressistas do país, para formular um grande projeto de Brasil a partir de uma atualizada proposta neodesenvolvimentista, conducente, autonomamente, no âmbito do Mercosul e da Comunidade Sul-Americana de Nações, à construção, no Brasil e na região, de uma moderna, próspera e equitativa democracia social.


Folha de São Paulo (SP) 28/8/2005