Portuguese English French German Italian Russian Spanish
Início > Artigos > Do poema como cântico

Do poema como cântico

 

Apesar de uma corrente poética haver defendido a presença de uma história, de um enredo mesmo, no poema, a preeminência da canção jamais deixou de predominar na poesia de qualquer tempo. A frase de Paul Éluard - "A poesia é a linguagem que canta" - serviu, no século XX, de lema para poetas de várias tendências, embora Ezra Pound haja condenado o cântico exageradamente usado na poesia, tendo mesmo achado muito "declamatório" o verso de Spenser "Sweet Thames, run softly till I end my song" - "Doce Tâmisa, flui manso até o fim de minha canção" - que é um trecho muito citado do poeta inglês.


O livro de poemas que está sendo lançado este mês, de Carlos Nejar, vem dar à canção uma beleza vocabular em tudo de acordo com a sua posição na poesia brasileira de nosso tempo. O título do volume, "Canções", marca o rumo das palavras e dos versos, numa busca também da música ínsita na linguagem do homem desde que saiu de dentro de si mesmo para se comunicar diretamente com o mundo circundante. Sob esse aspecto, mostra o casal de poetas ingleses, Robert e Elizabeth Browning, uma clara tendência em favor do cântico.


Ao dizer que "a Realidade é a canção de Deus", pregavam os Browning todo um caminho do fazer-poesia ("God himself is the best poet/ And the real is his song" - "O próprio Deus é o melhor poeta,/ e a realidade é a sua canção"). Esse ideal se manteve também na poesia francesa, em Paul Valéry, Éluard e outros, entregues à música existente na palavra.


Leia-se, de Nejar, esta "Canção por um fio": "Sempre estou me despedindo,/ como se olhasse de vez/ ou apenas fosse andorinha/ sobre o longo fio de Deus./ E não importa o que finda,/ se adiante já brotou./ As folhas não são varridas/ somente numa estação./ Fui eu que esgotei a vida,/ não a vida me esgotou./ E se estou em despedida,/ as coisas me seguirão."


A canção, em Nejar, busca todos os assuntos, pega em palavras firmes, atravessa instrumentos normais da vida, apresenta coisas que são mais do que simples coisas, de vez em quando pega instrumentos musicais e neles faz repousar o poeta sua mensagem. "Canção nas cordas da noite": "A escuridão é uma guitarra/ tão longa para quem ama./ E este planger ninguém pára/ até cessar sua chama.// Quem a toca, sabe quando/ cordas rangem, rasgam alma./ Pensamentos caem na palma:/ olhos de lobo queimando.// Quem ama já prende a vara/ da música sobre as folhas./ E nem a guitarra molha/ mais que a lágrima se cala.// Que mão pela corda toca,/ senão o tempo que chora?/ Amor tem a fala toda/ e um só gemido na aurora."


Chega-se à conclusão de que toda literatura é simbólica, embora nem toda literatura seja simbolista. Poderia Carlos Nejar estar perto do simbolismo, embora não a ele submetido. No fundo existe sempre o simbólico em qualquer feitura que se aproxime daquilo que chamamos de arte.


Não cai o poeta Carlos Nejar no preciosismo que pode às vezes perturbar a dignidade de um poema. Sua linguagem é de uma nova e digna rigidez, turbada pela emoção, mas rigidez sempre, que eleva seus ritmos a uma camada pouco freqüentada pelos que fazem versos. Seu mundo de palavras revela, por isto, inesperados contornos, numa construção técnica saturada de significados. Sua poesia não se entrega nos primeiros contatos, pois suas palavras ganham ressonâncias que ficam na memória vocabular de quem as lê.


Além da parte subordinada a canções, apresenta o livro de Nejar, em suas primeiras páginas, poemas diferentes, de que estes versos são um bom exemplo: "Que poder amor concede,/ o que a glória não rejeita./ Amor, por que já não vergas/ tuas próprias labaredas?/ Ou acaso o mundo nega/ ter nas garras - fogo e seda,/ ter fogo de seda cega,/ ou apenas vereda negra./ Que poder amor concede/ inda que em fogosas trevas?"


No panorama da poesia brasileira deste novo milênio (e em nenhum outro setor vem mostrando nossa literatura tantos caminhos, novos e bons) insere-se a partir de agora a recolta de "Canções" de Carlos Nejar. Edições Garamond. Capa e projeto gráfico do Estúdio Garamond e Matheus Graciano (sobre a obra "O aniversário", de Marc Chagall).


Tribuna da Imprensa (RJ) 9/10/2007