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Do escândalo à reforma

 

O escândalo correspondente ao conjunto de operações relacionadas às denúncias do deputado Roberto Jefferson, que vêm sendo progressivamente comprovadas nos vários inquéritos em curso, alcançou proporções estarrecedoras. Segundo as declarações do agente desses pagamentos, o empresário Marcos Valério, os repasses a políticos ou a seus assessores efetuados desde princípios de 2003 alcançam a cifra de R$ 55,8 bilhões e o montante arrecadado para enfrentar tais repasses supera R$ 70 bilhões.


O entendimento desse escândalo e de seus efeitos requer que se considere três distintos aspectos, relativos, respectivamente, aos fatos, às responsabilidades dos envolvidos e às medidas corretivas que importa adotar.


No que se refere aos fatos, o que é ainda mais escandaloso que o pagamento das vultosíssimas somas em jogo, em troca de apoio político, é a montagem de um sistema destinado a saquear o Estado a favor de um partido político, o PT, de seus aliados e, presumivelmente, de alguns de seus membros individuais. Considerável número de cargos de chefia, em autarquias e outras agências federais, foram preenchidos, por indicações do PT, de forma completamente independente da competência e da idoneidade dos nomeados, mas exclusivamente em função da medida em que os novos titulares se comprometiam a desviar recursos públicos a favor do partido ou a firmar contratos superfaturados com empresas que passariam tais recursos aos indicados pelo partido e independentemente da validade dos serviços a serem supostamente prestados.


Essa escandalosa prática tem alguns de seus responsáveis já identificados. O esquema central desse processo contava com a atuação do empresário Marcos Valério, cujas empresas obtinham contratos de favor de alto valor monetário, para possibilitar os repasses. Contava, no PT, com o ex-tesoureiro Delúbio Soares, que efetuava os pagamentos, com o ex-secretário-geral Silvio Pereira, que fazia as indicações para nomeações em cargos públicos convenientes para o esquema e com a conivência do ex-presidente do partido, José Genoino. Um esquema dessa natureza, como declarou o deputado Jefferson, só poderia funcionar se o deputado José Dirceu, que operava como primeiro-ministro do governo Lula, à frente da Casa Civil, o viabilizasse.


Ainda há muito que apurar, no terreno dos fatos. Importa que se o faça com urgência, de sorte a que o país não fique indefinidamente paralisado por esse macro-escândalo. Importa, igualmente, que se elucide a medida em que o presidente Lula - como o deseja a nação - não tenha sido co-responsável por essas práticas, mas apenas delas não se tenha dado conta.


Além da matéria de fato, esse estarrecedor escândalo tem outras duas dimensões relevantes. A mais imediata diz respeito ao imperativo da responsabilização legal de todos os implicados. A impunidade dos responsáveis acabaria com o Estado de Direito no Brasil e acarretaria a irremediável desmoralização internacional de nosso país.


A terceira relevante dimensão contida nessas ocorrências diz respeito à urgente e impostergável necessidade de se proceder a uma ampla e profunda reforma política. É certo que a prática de atos ilícitos é sempre da responsabilidade individual dos que os pratiquem. Daí o imperativo da apropriada punição dos culpados pelo escândalo do “mensalão”. Esse escândalo, todavia, ocorre em virtude de condições institucionais e operacionais que o tornaram possível. Essas condições dizem respeito, por um lado, à atual legislação reguladora de eleições e dos partidos políticos. Por outro lado, derivam das profundas distorções e deficiências que caracterizam nosso atual sistema partidário.


Existe desde já bastante tempo um consenso, entre os estudiosos da matéria, no sentido de que o Brasil deve adotar eleitoralmente o denominado sistema distrital misto. Esse sistema faz de sorte a que restritas unidades eleitorais, os distritos, elejam, cada qual, seu representante, a partir de uma lista partidária. Outro número de vacâncias legislativas - desejavelmente em bem menor proporção - serão preenchidas por votação nominal, por estados da Federação. Isto permite uma estreita relação entre o representante distrital e seu eleitorado e anda possibilita, a algumas lideranças, serem escolhidas em nível estadual.


Outras importantes exigências da reforma são: (1) financiamento eleitoral exclusivamente público, com criminalização de contribuições privadas. Observe-se que o regime distrital misto reduz os gastos eleitorais a uma pequena fração dos atuais; (2) estrita fidelidade partidária durante o curso de cada legislatura; (3) exigência, se nenhum partido obtiver apropriada maioria, de que se forme uma coligação de partidos, com programa e liderança únicos, para cada legislatura. Com esse requisito, assegura-se continuidade e responsabilidade políticas à atuação legislativa, dispensando o titular do poder executivo de entabolar alianças esdrúxulas, ainda nos casos infreqüentes em que o presidente não tenha maioria parlamentar; (4) necessidade, finalmente, para a subsistência de um partido, da obtenção, em cada eleição, de um mínimo de 5% de votos em apropriado número de estados da Federação.


Adotado esse novo regime eleitoral e partidário, abrem-se condições para uma ampla reorganização do próprio sistema partidário. Temos, atualmente, uma situação absurda. Os dois principais partidos adversários, PSDB e PT, são ambos partidos de vocação social-democrata, com projetos políticos equivalentes. Contrastando com essa situação um partido de centro-esquerda, como o PSDB, é aliado de um partido de centro-direita, como o PFL. O PT, por sua vez, em vez de formar, com o PSDB, um grande movimento social-democrata, se alia a partidos destituídos de qualquer significação pública, que operam como centros de mercantilização do voto.


Importa rearrumar as cartas políticas, formando-se duas grandes coalizões, de centro-esquerda, com o PSDB e o PT, e de centro-direita, com o PFL e o PMDB. Importa, concomitantemente, depurar esses partidos de sua ganga oportunista - o que tende a ocorrer com o regime distrital misto -, assim os revigorando com participantes que sejam efetivos representantes de seus respectivos projetos públicos.


A grande crise política pela qual passa o Brasil abre a oportunidade para uma grande renovação. Para tanto, porém, é preciso que o presidente Lula e as principais lideranças políticas se conscientizem da gravidade da crise e optem por grandes soluções, e não por emendas de esparadrapo. Os presentes indícios, lamentavelmente, não apontam nessa direção. Se, entretanto, ela não for tomada, as causas da crise persistirão e tornarão a se manifestar, apenas de forma ainda mais grave.


Jornal do Brasil (RJ) 13/8/2005