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Democratizar a democracia

 

Pouco mais de dez anos antes de sua morte, o professor Norberto Bobbio enumerava uma longa lista de “promessas não cumpridas” da democracia.


Entre elas, destacava a supremacia dos interesses sobre a representação política, a persistência das oligarquias, a limitação do espaço público da democracia, a existência de poderes invisíveis e a falta de educação política dos cidadãos. Parodiando os principais autores que abordam o problema, poderíamos dizer que, muito provavelmente, as democracias são tão mais democráticas quanto mais intensa é a participação política. Em “Os Fundamentos da Democracia”, Hans Kelsen afirma que a característica essencial desse regime é a participação no governo.


Democracia, diz ele, “não é uma fórmula particular de sociedade ou uma concreta forma de vida, mas sim um tipo específico de procedimento ou de técnica, em que a ordem social é criada e aplicada pelos que estão sujeitos a essa mesma ordem, para assegurar a liberdade política, entendida como autodeterminação”.


Os conceitos de Kelsen nos levam, necessariamente, à distinção entre democracia representativa e democracia participativa. A teoria da representação é calcada na premissa de que os que tomam as decisões na democracia representativa são os representantes livremente escolhidos pelos eleitores. Mas isso apenas não afiança que essas leis sejam justas e equitativas e expressem o interesse comum. Justiça, equidade e interesse comum são predicados cuja presença se dá na exata proporção em que o processo adotado é o da democracia participativa.


Considerado sob esse aspecto, o fundamento ético da representação política e seu papel insubstituível consiste na necessidade de enfrentar e superar as novas demandas sociais.

Em outras palavras, o desafio reside em perseguir sistemas melhores e mais eficientes, capazes de responder de forma eficaz às demandas da sociedade. Quando isso não corre, o resultado é o surgimento de crises que se sucedem sem que, muitas vezes, saibamos qual a sua causa.


E, como dizia Ortega y Gasset na crise dos anos 30 em seu país, quando “não sabemos o que se passa conosco, isso é precisamente o que se passa: não sabemos o que se passa conosco”. As relações entre democracia e participação política guardam intensa relação com a distinção formulada por Georges Burdeau entre o que ele chamou de democracia governante e democracia governada. A primeira é a democracia representativa, em que os cidadãos não decidem as questões de seu interesse, mas escolhem os que devem decidir por eles. E a democracia governada é aquela em que a representação política se dobra à vontade popular, tornando-a, como ele definiu, “demo dirigida”.


O que faz a diferença entre ambos os conceitos é que, em um, o eleitor escolhe os que decidem e, no outro, o eleitor decide e não escolhe. O que Burdeau chama de democracia governante, os demais especialistas chamam de democracia plebiscitária. Com toda razão, Stuart Mill, na crítica à obra de Tocqueville, argumenta que de nada servem o sufrágio universal e a participação no governo nacional se o indivíduo não foi preparado para essa participação a um nível local, já que é nesse nível que se aprende a governar.


Em outras palavras, para que os indivíduos em um grande Estado sejam capazes de participar efetivamente do governo da “grande sociedade”, as qualificações necessárias subjacentes a essa participação devem ser fomentadas e desenvolvidas no plano local.


Essa advertência serve em especial para um país como o Brasil, em que as sucessivas experiências de reformas políticas jamais se consumam, por não serem as inovações testadas nos municípios e só depois estendidas às demais esferas do poder.


Só a democracia garante a liberdade, busca a igualdade e tem como pressuposto a ética como princípio, as eleições como meio e o aperfeiçoamento da sociedade como fim. A democracia que temos e a democracia que queremos dependem sobretudo de nós e de nossa participação. Como participar é outra lição que espero seja útil a todos nós. Só se aprende a participar participando. É isso que defendo, porque essa é a minha mais profunda convicção.


Folha de S. Paulo, 21/6/2009