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Da misericórdia poética

 

Pediu-me o nobre editor da Life uma antologia com sessenta poemas, comemorando o meu aniversário de criação literária.

E confesso, leitores, veio-me o raro sentimento de não querer ferir os viventes poemas.

Hoje, lendo livro a livro, tomou-me grande ternura por eles que me suportaram tanto tempo na página branca e me penalizei de ter que fazer uma escolha, quando eles que me escolheram para nascer.

E a poesia desce como um vento nas árvores da invenção. Fiquei perplexo. Podiam sentir o velho complexo de inferioridade, já que há que fazer uma seleção.

Disse-me o editor, friamente, a exigência do critério de qualidade. Mas cada um deles se distingue e é a diferença que os une.

E como se todos são companheiros de infância da palavra e nenhuma voz do universo é menos útil, todos são como discípulos de uma escola no idioma e me custa privilegiar alguns, em detrimento de outros.

Assim, fui deixando um tempo se amontoar entre mim e eles, certa sabedoria, percebendo que sabedoria não se compra na feira.

Ou ela existe ou a insensatez se redobra, ou aparcialidade se avulta e discrição se regala, longânima.

Mas talvez seja demasiado cuidado meu, de autor, porque se dirá que os poemas dormem o sono da imortalidade. E nem se dão conta dos desatinos humanos. Mas querem lugar ao sol.

Todavia, tenho a esperança misteriosa, já na quarta idade do sonho, com retorno à infância, o que não explico, caros leitores, tenho a solitária e doce esperança de que os poemas me sobrevivam, mesmo que seja neblina o futuro.

E usarei de cautela para não os aborrecer, na escolha. E é ofício de equilibrista sobre o estendido arame das horas.

Tribuna Online, 03/08/2020