Bom repórter não acredita em nada à primeira vista. Quando o pianista carioca Tenório Jr., revelação do samba-jazz dos anos 1960, desapareceu na conturbada Buenos Aires de 1976, só se podia perguntar: brasileiro, apolítico e a trabalho na cidade, o que explicaria seu sumiço às vésperas do golpe militar da extrema direita argentina, que, como saberíamos, deixou 20 mil mortos?
Uma versão "oficial" surgiu dez anos depois, com a entrevista de um ex-membro da Inteligência local a uma revista brasileira descrevendo o martírio de Tenório. Naquela noite, ao sair à rua para comprar algo, ele teria sido confundido com um guerrilheiro, preso, torturado durante nove dias e, quando se deram conta do engano, morto, talvez jogado de avião no mar. O responsável seria Alfredo Astiz, já sabidamente autor de muitos crimes. Certos detalhes pareciam dar veracidade à história.
Sylvia Colombo, baseada em Buenos Aires, e Thea Severino, colaboradoras da Folha, interessadas em Tenório, nunca compraram essa explicação. Sei disso porque conversaram a respeito comigo em 2023, quando já estavam mergulhadas no caso. Muitos detalhes eram duvidosos: local e tempo de tortura, torturador óbvio e conveniente, destino do corpo.
A recente descoberta de impressões digitais coincidentes com as de Tenório permitiu a identificação de seu corpo num arquivo —morto com cinco balas, enterrado em cova rasa num cemitério da periferia portenha e descoberto pela polícia dois dias depois do sumiço. Significa que Tenório foi morto horas depois do sequestro, o que não exclui a hipótese de tortura e confirma a brutalidade dos golpistas, dispostos a matar sem hesitar. Não exclui também a possibilidade de omissão de diplomatas brasileiros então em Buenos Aires, empenhados numa cooperação continental, a Operação Condor, destinada a exterminar suspeitos de ação contra as ditaduras da região. Custou, mas começa a se abrir a tampa do piano.
Tenório deixou suas digitais em muitos teclados. Elas agora o trazem de volta.