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Capote valente

 

Escritores freqüentemente são temas de filmes. Nos últimos anos vimos películas que giravam em torno de Shakespeare, Virginia Woolf, Henry Miller, Sylvia Plath, para citar apenas alguns exemplos. Agora temos como candidato ao Oscar o filme de Bennet Miller, "Capote", que retrata momentos particularmente dramáticos da trajetória de um autor americano de grande sucesso.


Nascido em Nova Orleans em 1924, Truman Capote passou a maior parte de sua vida em Nova York, onde se tornou uma figura conhecidíssima nos círculos sofisticados da "Big Apple". Abertamente gay, chamava a atenção por sua voz aguda, suas roupas conhecidas e sua capacidade de fazer fofoca.


Era também um mitômano contumaz - dizia-se amigo íntimo de Greta Garbo a quem, na verdade, nunca tinha conhecido. Fazia ocasionais pontas em filmes e escreveu roteiros, mas o que o tornou realmente conhecido foi seu trabalho como jornalista e escritor.


Seus textos, especialmente os ficcionais e os de caráter autobiográfico, ajudaram a consolidar o que era conhecido nos anos 50 como "estilo homossexual", um expoente do qual era o dramaturgo Tennessee Williams. O sucesso veio já com os primeiros livros e culminou com "Bonequinha de Luxo" (1958, Companhia das Letras). A personagem principal, Holly Golightly, era uma síntese das mulheres que Capote conhecia: bela, audaz e ansiosa por ascensão social.


Novo jornalismo


Mas o ápice da carreira veio mesmo com "A Sangue Frio" (1966). Em 1959, Truman Capote leu, no "New York Times", uma matéria descrevendo o assassinato, ainda misterioso, de quatro pessoas de uma mesma família na região rural do Kansas. Fascinado pela história, para lá viajou acompanhado de sua amiga e colaboradora Harper Lee, autora do best-seller "To Kill a Mockingbird" ("O Sol É para Todos", livro que, Capote insinuava, tinha sido escrito em grande parte por ele).


Nos anos que se seguiram, acompanhou muito de perto a investigação. Seu objetivo inicial era elaborar uma matéria jornalística para a "New Yorker"; nesse sentido sua simpatia pessoal e seu poder de sedução desempenharam um papel importante no relacionamento com as pessoas, inclusive e principalmente, os dois assassinos, Perry Smith e Richard Hickock.


Logo ficou claro, porém, que seu método nada tinha a ver com o jornalismo convencional. Para começar, Capote não tomava notas ou gravava entrevistas; memorizava os eventos e as conversas e depois os transformava em texto. Inevitavelmente intervinha aí um processo de seleção emocional, similar à livre associação freudiana e que é a base mesmo da elaboração ficcional.


Essa mistura do objetivo e do subjetivo, do factual e do imaginário, seria a base do chamado "novo jornalismo", do qual Truman Capote foi assim um dos pioneiros.


Por outro lado, o texto foi crescendo e já não cabia nos limites de uma revista, mesmo serializado; nasceu daí o livro que, obviamente, só pôde ser concluído após a execução dos criminosos, o que foi recebido com alívio e até alegria pelo autor (uma atitude que, obviamente, em nada melhorou sua imagem).


Publicado, "A Sangue Frio" transformou-se em best-seller mundial.


Cinema


O filme, magnificamente estrelado por Philip Seymour Hoffman, retrata de maneira muito convincente Truman Capote como escritor e como pessoa. E esse retrato está longe de ser elogioso, pelo contrário.


O que temos aí é um Capote cínico, mentiroso, manipulador, alguém que fará qualquer coisa para obter aquilo que quer, no caso, material para um livro. É verdade que, no momento da execução, vemos o personagem derramar sentidas lágrimas, mas isso não chega a redimi-lo, como aliás aconteceu na vida real.


Depois de "A Sangue Frio", Capote nunca mais publicou algo digno de atenção. Adicto a álcool e drogas, tornou-se um recluso e acabou morrendo de uma overdose aos 59 anos.


O que chama a atenção em tudo isso é o contraste entre o talento e o poder de criação do escritor Capote e a mesquinhez do ser humano Capote. Estamos acostumados a pensar em escritores como pessoas íntegras, generosas, tolerantes, heróicas, até; mas será sempre esse o caso?


Obviamente não, e isso por causa da própria natureza da atividade literária.


Escrever é um ato eminentemente solitário, o resultado de uma funda introspecção. Quando perguntaram a Gustave Flaubert quem era, na realidade, Madame Bovary, a sua resposta foi tão curta quanto enigmática: "Madame Bovary sou eu".


Ou seja, a personagem era uma versão ficcional, uma projeção, do próprio autor.


Esse mergulho interior não se faz sem um preço. Como disse o próprio Flaubert: "Parece-me que atravesso uma solidão sem fim para ir não sei aonde; sou, ao mesmo tempo, o deserto, o viajante e o camelo".


O mergulho interior não raro acarreta a perda dos referenciais comuns à maioria das pessoas, inclusive no sentido moral: "Não há livros morais ou imorais", dizia Oscar Wilde (o Truman Capote de seu tempo), "há livros bem ou mal escritos".


E acrescentou, mais tarde, William Faulkner: "Escritores são guiados por demônios". Também é de Faulkner a sentença famosa: "Se, para escrever, um escritor tem de assaltar a própria mãe, ele o fará. A "Ode a uma Urna Grega" [do poeta romântico inglês John Keats], vale qualquer número de velhinhas".


Fica claro que essas sentenças se aplicam perfeitamente ao livro de Truman Capote. E também explicam por que as obras panfletárias do realismo soviético estão de há muito esquecidas. A literatura, como diria Pascal, tem mistérios que a razão comum desconhece.


 


Folha de São Paulo (São Paulo) 05/03/2006

Folha de São Paulo (São Paulo), 05/03/2006