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A ambição da criação

 

Oscar Gama Filho é, entre os escritores capixabas, o mais surpreendente. Se procuramos o poeta do notável "O Relógio Marítimo", editado pela Imago, encontramos o teatrólogo. E, se procuramos o intérprete de "Razão do Brasil", que a José Olympio publicou, importante visão da nacionalidade, achamos um dos psicólogos mais inventivos, generosos e competentes. 

Com todas essas percepções e talentos, Oscar e Alexandre Herkenhof Gama, seu filho, criaram um texto múltiplo, capaz de trabalhar o sonho, e personagens, vinculados a ele pelo afeto e pela tutela familiar, com o arrebatamento da poesia, parecendo, de início, ter sido gerado para o teatro. Mas não. Alongando-se pelo entretecer de vários gêneros, ao atear, na vertigem, a linguagem, com agulhas de tecer narrativa e delírio, foi compondo um romance. E é afinal no romance que a vida, aqui, supera o sonhar da morte. Ou porque, desde Homero, o romance principiou a ser grande poema. Ou porque o poema pode ser possuído por enredo e personagens tomando voz, impondo existência. Por ter o criador toda a paciência e impaciência reunidas. Não precisando distingui-las. 

Além disso, há um paradigma que entrelaça a poesia, certo prodígio, que é o de invadir os gêneros, pois os gêneros se bifurcam e se entre ligam, para que a estrutura dessa invenção de Oscar se manifeste como fábula, com força e ternura. 

Não é o homem que preserva o menino: é o menino que preserva o homem, onde a alegria da paternidade e a presença da amada coabitam num sistema mágico, às vezes onírico, deixando-se, vez e outra, atravessar, no texto, pela lógica, como fresta que não abandona certo traço de alucinação. Nem a alucinação desterra a experiência e o ânimo obstinado de continuar vivendo. 

Diz Jean Cocteau que a literatura se apura nos pormenores, e são eles que clareiam o conjunto, com a lucidez do autor e a invariável grandeza de se forjar a cada página. E fazem com que leitores, sob o cariz do idioma e dos achados, inventem junto. Busca-se a 
coerência e se encontra, dentro deste senso de ironia e humor, o que escasseia, a álgebra de um fulgurante mundo imaginado desde Itaparica. Com o fio imperturbável de coerência, capaz de ir desvendando também seu avesso de ver. Ou quantos avessos têm a percepção e o saber abismar-se. 

É o mesmo Jean Cocteau que assegura que um poeta deve ser reconhecido, mais do que pelo estilo, pelo olhar. Ainda que, aqui, haja marca de fogo do estilo, seu olhar é que o singulariza. Um olhar de compadecimento sobre o mundo e esse olhar sobre a casa, a família, o fervilhar de chamas que não se consomem na língua: tem música de alma. 

E pelo engenho, a arte de acionar o tempo, este livro é contagioso, aceso, e capta nossa comum humanidade, o que não é pouco. 

O segredo do romance no teatro e da poesia, nos côncavos luminosos do texto, carrega o leitor de fora para dentro, numa segunda ou terceira natureza, como se a distração fosse o assombro; e esse, uma verdade de que só são capazes os poetas, que estão presos numa outra teologia, a da luz. 

Mas há um estilo de época reinventado com ironia, marcando este livro de Oscar e de Alex como forma singular, dentro de um modelo, o Sobressimbolismo, no que é corajosamente inovador. Compondo-se de dentro para fora. 

Machado de Assis chama a ambição de caduca, mas sem ela não é possível nenhum laivo de perenidade. Mas é igualmente ele que lembra que "nas letras soltas do alfabeto, o homem é a sintaxe". Assim, o artista ou é ambicioso no êxtase de criar, ou então sucumbe na letargia. Porque não caduca a esperança, e inventar é tirar do impossível o possível, com o espírito que multiplica o amor. 

Sim, este livro é de bom amor, difícil de ser catalogado, como não se consegue nunca de jamais catalogar a vida. Se o texto é possessivo, é porque requer intimidade e, se avança nos gêneros, é por tentar abrir clareiras na consciência. O importante é que não se sai deste livro com o mesmo tino, por inflar-se de liberdade. O que significa que sabe morar sozinho, alteando-se de palavra. E recolhe um sopro que pode ler no escuro de nossas opulentas ou pungentes sensações. As mais fortes, as mais atentas, ou severas, de estarmos vivos.

A Gazeta (ES), 24/09/2016