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A agonia de um rio

 

Todos sabem: o Rio Doce, com o rompimento da barragem de Mariana, está morrendo. Não é desastre da natureza, obra do acaso, é desastre humano, crônica de morte anunciada, que só a Samarco não viu. E a agonia do rio é a do povo. Os bichos, os peixes, a fauna. Os homens consumidos pela lama em Minas e Espírito Santo. Sim, o rio deixou de ser doce e está em artigo de morte por imprudência. Onde havia água, é barro, onde havia vida correndo, é lama que engole, aos poucos, o rio, sua fundura, sua beleza e mistério, sua correnteza. Como antes engoliu pessoas da margem, soterradas de lama e fúria.

Todos sabem que não há paz na agonia, porque uma alma geral foi absorvida em tragos de penumbra e sujidade. Sofre o rio na pele, sofre no poluído sangue, sofre com pedra presa nas artérias e a respiração que fraqueja. Não se percebe até quando resiste, ou se já entrou na morte, já que os sentidos se trancam, as narinas ardem na secura, e seus sonhos falantes de água murcham. E quer acabar no mar.

Não é o mesmo Rio Doce de bois, vacas, plantas, peixes, com a sagrada vida devorando o tempo. Perde olhos, ouvidos, coração no peito e o que bate é o lodo, o que bate é o lodo, e a penúria dos homens passou para o rio, como o desespero do rio passou para os homens.

Obra dos bárbaros que desplumaram o rio (e o rio, ó poeta, não é mais cão, nem tem plumas)? São bárbaros os que o destruíram e não entenderam que fosse ele um ser vivo? Ou é o poder que não conhece limites, não possui sensibilidade, inteligência, desconhece civilização.

O Rio Doce morre, como um peixe pela boca, como a palavra pela omissão e o silêncio, morre de boca em boca desta gente das margens, morre pela boca dos animais, morre pela amargura da água. E já se ouvem seus gemidos, seu estertor. As feridas são nossas e tocam os ombros, semelhante ao fardo de seu caixão, que pesa muito, pesa infinitamente. Nem compreendemos o que fazer com ele, no rebuliço e zumbir dos insetos, do jacaré que não repara para onde se move, agarrado às raízes do barro, ou das árvores que não acolhem mais os pássaros. Ou é o mundo que para e não podia parar, parou e apodrece com o rio. Sem centímetros de profundeza, sem centímetros de lume, mergulhado com a cabeça em nadas de sombra. E o que restou da lágrima? Uma pedra. O que restou da dor, só lama que não ladra, não olha, não sente, não ama. O rio seca de morte, seca, amargo, sem identidade, rosto e já morde a noite. Quem o salva? São acaso promessas, as verbas, a construção de novas casas, novo povoado, o desamparo dos habitantes, o rumor de políticos à beira, sussurrando, como em velório, o soluço dos que, confiados, o guardavam, a insegurança das represas, os furos do engano, a técnica da técnica na indústria? Jaz o rio, morrendo, ferido e indefeso como um animal.

O Globo, 25/11/2015