Um dia, alguém usa determinada palavra de forma imprópria. Outro a escuta e, sem pensar, adota-a com o mesmo sentido errado. Com isso, já são duas pessoas contra a indefesa palavra, suficientes para espalhar o vírus. Em pouco tempo, já são 24 falantes legitimando o sentido errado e, quando este chega à mídia, não tem mais como segurar. O erro se cristaliza e condena a palavra a um uso que nunca lhe coube.
A vítima da vez é "buscar". Sempre significou "procurar", "tentar", "pretender". Agora significa "conseguir", "conquistar", "chegar a". Seu habitat é o futebol. Um time termina o primeiro tempo perdendo por 3 a 0. Volta do intervalo, faz três gols e os locutores dizem que ele "buscou" o empate. Sim, claro: buscou e chegou a ele –não ficou na busca, na tentativa. Esteja, portanto, atento: se ouvir o narrador dizer que o seu time "buscou a virada" no placar, saiba que, pelas novas regras linguísticas, ele já virou e você pode ir celebrar no botequim.
Outra já há alguns anos fora da lei é "sofrível". Em sua longa e respeitável carreira na língua portuguesa, "sofrível" sempre significou "aceitável", "admissível", "razoável", aquilo que se pode suportar sem dificuldade. De repente, inverteram-lhe o sentido. Tornou-se algo "péssimo", "horrível", "insuportável", que nos faz sofrer. Hoje, se o seu time terminou o primeiro tempo perdendo por 5 a 0, é porque teve uma atuação "sofrível", ou seja, intolerável, de demitir o técnico no vestiário.
Palavras que nos prestaram bons serviços por séculos são demitidas da língua ou aposentadas sem aviso prévio, e substituídas por outras de sentido apenas aproximado. "Perto", por exemplo, deixou de existir. Tudo agora é "próximo", que não é bem a mesma coisa. "Por causa de" foi expulso do léxico, substituído pelo "por conta de". E deu-se adeus à preposição "a". Um sucesso musical da praça é "Não aprendi dizer adeus", em vez de "Não aprendi a dizer adeus". "Obrigar a fazer" virou "obrigar fazer". "Daqui a três meses" virou "Daqui três meses".
E o "além", que sempre nos bastou, ganhou um apêndice e agora é "para além", como em Portugal. Lembra-se daquele querido seriado de TV, "Além da Imaginação"? Hoje seria "Para Além da Imaginação".
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