Era uma vez um menino que, muito pequeno ainda, chegara ao Rio de Janeiro das Minas Gerais. Estudou sempre em Copacabana, em colégio onde, mais para o fim do curso, teve uma professora bonita, nascida em Botafogo. Adolescente, quando ele já acalentava a pretensão de julgar-se rapaz, aquela grande preceptora, e outro professor – igualmente ilustre, embora chamá-lo belo seria exagerar-lhe os atributos –, aprofundaram no aluno o prazer da leitura e da escrita em língua portuguesa. A jovem, formosa e querida mestra contribuiu para nele acentuar, desde então, o gosto por estudos que, também por sua causa, o têm acompanhado pelo resto da vida. A tal ponto que, embora sem o tornarem mais que um aprendiz de escritor, confessadamente bissexto, acabaram por trazê-lo a este plenário prestigioso de grandes cultores do idioma. O caro professor se chamava Carlos Henrique da Rocha Lima. A mestra amada, Cleonice Serôa da Motta, depois Berardinelli, a quem tenho, hoje, a honra desvanecedora de aqui receber.
Nossa docente maior diz ter sido “empurrada” para cá pelos seus “meninos”. Entre estes, naturalmente liderados pela discente Ana Maria Machado, nos alinhamos, discípulos de sempre, Antônio Carlos Secchin, Domício Proença Filho e o que vos fala, e não precede os demais por merecimento, senão pela antiguidade, pois é estudante há mais tempo. Ainda falta um, o mais dotado, que fulgurava intensamente, lembrando lâmpada ligada a voltagem superior à sua, e, por isso mesmo, logo extinta, aos 49 anos: José Guilherme Merquior. Nós todos fomos alunos de Cleonice, e os outros, mais literatos que eu. Aqui, todavia, me reservo o direito de aceitar a precedência que me confere a ancianidade, atribuindo-me o privilégio de saudar Cleonice Berardinelli como decano dos seus pupilos nesta casa.
Suas contribuições à nossa língua foram tais, tais os seus títulos eméritos em português, que surpreende haver sido ela, somente agora, chamada a integrar uma casa que “tem por fim a cultura da língua e da literatura nacional”, conforme reza seu Estatuto.
Quando a mestra eminente completou cinquenta anos do magistério superior de Literatura Portuguesa na Universidade Federal do Rio de Janeiro, os professores daquela disciplina, seus colegas, publicaram um livro denominado Cleonice: clara em sua geração, lembrados que estavam das palavras de Fernão Lopes sobre o condestável Nuno Álvares Pereira: “Como a estrela da manhã, foi claro em sua geração, sendo de honesta vida e honrosos feitos, no qual parecia que reluziam os avisados costumes dos antigos e grandes varões.”
É curioso recordar que a grande cultora da língua e da literatura portuguesas sempre se mostrou excepcionalmente dotada para matemática e para a música. Tencionava tornar-se engenheira, e sonhava também com a orientação de Lorenzo Fernandez, que lhe fora oferecida pelo maestro, por considerá-la uma virtuose ao piano. Mas, sob a influência de professores e familiares, acabou cursando Letras Neo-Latinas na Universidade de São Paulo, onde teve mestres da envergadura de Rebelo Gonçalves, Pierre Horcade, Michel Berveiller, Fidelino de Figueiredo e Giuseppe Ungaretti (privei com este grande poeta italiano na Embaixada do Brasil em Roma, que ele frequentava assiduamente nos anos cinquenta). Cleonice reconhece ter-se apaixonado pelas disciplinas linguísticas – que segue estudando sem cessar – ao ouvir Fidelino, seu mestre maior. E, ao louvar o ilustre lente lusitano, ela não só manifestou a mais firme profissão de fé antifascista, como, enquanto recordava o suave relacionamento mantido pelo professor com os alunos, indicou, também, a disposição com que viria a lecionar até hoje: “Nosso ponto de maior confluência foi um mestre muito especial, que, português, era um cidadão do mundo. O mundo o acolhera quando a pátria o rejeitara. A pátria não, o regime que a dominara, o execrado salazarismo, que ele criticara, e contra o qual se insurgia. A Universidade de São Paulo o convidou, e nós recebemos com simpatia crescente a cada nova aula, a cada encontro. A par do afeto, a admiração. Admiração pelo saber, pela capacidade de transmiti-lo, pela inteira simplicidade. Viamo-lo lá no alto da sua competência, e nos sentíamos pequenos. Ele, porém, nos dava a mão, acercando-se de nós, buscando uma relação que nos aproximasse, sobretudo, pela afeição.”
A literatura portuguesa começara a ser ensinada em nível universitário, no Brasil, por Fidelino de Figueiredo. Pode-se imaginar como Cleonice recebeu dele, encantada, o convite para ser sua assistente. Mas, ao chegar a casa, no mesmo dia, teve a decepção de saber que o pai militar fora transferido para o Rio de Janeiro. Prosseguiu, assim, a carreira universitária na Faculdade Nacional de Filosofia da antiga Universidade do Brasil. No teatro estudantil, coube-lhe representar, no Auto da alma de Gil Vicente (que, daí em diante, ela nomeou seu padrinho literário), o personagem do anjo da guarda – papel que lhe coube como uma luva, pois o seria sempre para cada um dos seus discípulos. Quanto à atividade letiva, tornou-se assistente de Thiers Martins Moreira, que lecionava Literatura Portuguesa no Departamento de Letras. E foi Thiers quem lhe abriu o espírito para o mundo poético de Fernando Pessoa.
Na Faculdade, Cleonice apresentou tese de livre docência intitulada Poesia e poética de Fernando Pessoa. Passaria, com o tempo, de assistente a adjunta e titular. Tornou-se doutora em Letras Clássicas e Vernáculas, lecionou nos cursos de mestrado e doutorado, foi orientadora, conselheira, pesquisadora, crítica e ensaísta, culminando a carreira como professora emérita da, já então, Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde ainda ensina. Universidade, aliás, em cuja área administrativa participou do Conselho de Ensino e Graduação, do Conselho de Ensino para Graduados e Pesquisa, atuou como diretora adjunta e coordenadora da Pós-Graduação na Faculdade de Letras.
Aliás, seria de perguntar onde Cleonice não lecionou, onde não se encontram ex-alunos seus, que tanto ficaram a dever-lhe pela vida afora. Ela os teve na Universidade Federal Fluminense, pois ali daria cursos de pós-graduação, e fora aprovada em primeiro lugar no concurso para titular de Literatura Portuguesa; na Universidade Católica de Petrópolis; na Universidade Santa Úrsula.
Em 1963, a Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro convidou-a para coordenar a área de Literatura Portuguesa no Departamento de Letras da sua Faculdade de Filosofia, e, nos anos setenta, a mestra ilustre participou do programa de pós-graduação. Já aposentada, um convênio firmado entre o Instituto Camões e a Universidade Católica criou nesta última, especialmente para a sua professora emérita, a Cátedra Padre Antônio Vieira de Estudos Portugueses, a fim de promover pesquisas, seminários, palestras, cursos e a edição de publicações. E, ao opinar sobre Vieira, Cleonice revelou, tanto quanto o padre jesuíta, os seus princípios éticos e a sua forma de julgar a ação política: “Eu me interessei muito pelos sermões engajados, em que ele defende uma contra-ideologia, e enfrenta os senhores de engenho. Imagine o que é um jovem sacerdote diante do poder econômico que representa os tais senhores de engenho, para defender diante deles, acusando-os, senão direta, indiretamente, de tudo que se fazia contra os negros. Ele defendeu os índios, os menos favorecidos, defendeu os judeus, num momento em que isso era perigoso.”
Recebido o Diploma de Mérito do Instituto Camões, ela seria ainda homenageada pelo primeiro livro editado por aquela instituição na série Figuras da Lusofonia – Cleonice Berardinelli.
Foram diversas as universidades brasileiras, americanas e européias em que Cleonice proferiu conferências, ministrou cursos, integrou congressos e seminários, presidiu bancas examinadoras. Em 1972, designada pelo Ministério da Educação e Cultura, foi membro da Comissão Especial Brasileira do Quarto Centenário de Os Lusíadas. Em 1985, participou do Segundo Congresso Internacional de Estudos Pessoanos, e, em 1988, de conferência reunida para celebrar o centenário do poeta, ambos em Lisboa, onde teve editados os seus Estudos de Literatura Portuguesa. De 1985 a 1989, seria professora visitante nas universidades da Califórnia e de Lisboa, ministrando cursos de pós-graduação em Literatura Portuguesa.
Cleonice presidiu a Associação dos Professores de Literatura Portuguesa do Estado do Rio de Janeiro, foi membro-fundador da Associação Brasileira de Professores de Literatura Portuguesa, é vice-presidente da Associação Internacional de Lusitanistas. Hoje, aqui no Rio, prepara cursos para a Casa do Saber, onde, faz pouco, dissertou sobre “Sete Séculos de Poesia Portuguesa” – a trovadoresca, a palaciana, as dos séculos XVI, XIX e XX. Já orientou mais de cem dissertações, ensinou a mais de mil alunos. Nunca tirou férias, licença-prêmio, licença especial. E, como se os seus inúmeros títulos fossem poucos, esta stakhanovista do trabalho intelectual a eles acresce os de pesquisadora do Conselho Federal de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, consultora da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, a CAPES, e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, a FAPERJ, que lhe outorgou a sua Medalha do Mérito Científico.
Das tantas obras de Cleonice – que não elencaremos, evitando transformar esta saudação em catálogo de livraria –, cumpre destacar, como simples exemplos entre as mais desenvolvidas, que o seu ensaio camoniano mais antigo data de 1963, quando ela já havia publicado desde dez anos antes, por iniciativa do professor Thiers, uma coletânea de cantigas medievais transpostas para o português moderno, uma antologia comentada de Mário de Sá-Carneiro, e uma edição crítica de auto quinhentista anônimo. Publicaria, ainda, as Poesias de João de Deus e o Teatro de Gil Vicente, além de elaborar a edição crítica das obras dramáticas de Antônio Ribeiro Chiado. Em 1973, vieram os Estudos camonianos, focalizando a épica, a lírica e o teatro do poeta imenso; com introdução e notas apareceria, em 1975, a Obra em prosa de Fernando Pessoa, e, em 1980, o corpus dos Sonetos de Camões, por ela considerado a “obra mais extensa e de maior responsabilidade que até hoje preparei”; os amplos Estudos de literatura portuguesa surgiram em 1985; vieram, em 1988, a edição crítica de A passagem das horas de Álvaro de Campos, e, em 1990, a dos Poemas de Álvaro de Campos.
Aqui, torna-se significativa a atenção prestada por Cleonice a este heterônimo do poeta, que se indagava: “O que é a necessidade de escrever versos, senão a vergonha de chorar?” Heterônimo a quem o autor emprestou o seu poema que mais me atrai, “A tabacaria”. Atrai e inquieta, como o Livro do desassossego, do heterônimo Bernardo Soares.
A Secretaria de Estado da Cultura de Portugal patrocinou a edição crítica da obra pessoana, de autoria da nossa mestra. E ensaios de Cleonice Berardinelli sobre o grande vate português foram ainda publicados em Fernando Pessoa: outra vez te revejo..., de 2004.
A própria Cleonice justifica suas preferências, confessando “o muito amor que dedico aos dois poetas exponenciais de Portugal – Camões e Pessoa”. Ela considera que nenhum outro dos seus ensaios lhe deu a satisfação proporcionada pela “Leitura do Adamastor”, extraído d’Os Lusíadas: “É minha. Ninguém, que eu saiba, a fez antes de mim. Gosto do meu Adamastor, com suas duas faces, antes e depois de Vasco da Gama, a que inspirava medos e a que causa compaixão. O Adamastor, desvendado, revelou a outra face, a face da fraqueza, até aí irrevelada. Não se mata, na verdade, mas perde a sua unidade aparente, passa a ser a imagem do povo que o decifra e que nela se projeta, para nela se reconhecer.”
Não ousei indagar-lhe para qual dos bardos, entre ambos, son coeur balance. Pois ela afirma que, na leitura do grande épico camoniano, “era preciso voltar e voltar, a percorrer caminhos, a descobrir recantos, por vezes de difícil acesso; que o texto do poeta maior se desvelava aos poucos, sempre guardando segredos a serem decifrados. E, depois de tantas navegações pelos seus versos, ainda continuo a ter revelações.” Mas tampouco desconheço que, ao lado da sua cama, dormem as obras de Fernando Pessoa. Nem que, durante a primeira visita a Portugal, Cleonice reconhecia: “No princípio era o sonho... Mas, agora, já começou a ser realidade... (...) Será que eu não posso dizer, ver ou pensar, sem que Pessoa se intrometa?” Isso desde que conviveu com os papéis do poeta, reunidos no espólio da Biblioteca Nacional de Lisboa.
Ela também publicou Os melhores poemas de Bocage, uma antologia dos versos de José Régio, e prefaciou Miguel Torga. Nem se cuide, porém, que a atenção e admiração da professora ilustre se concentram, apenas, nos grandes bardos lusitanos. Cleonice, cultora dos maiores poetas brasileiros (afirmou, certa vez, que “a poesia de Machado de Assis nada fica a dever à sua prosa”), era, também, por eles justamente admirada. Manuel Bandeira, em crônica, assim se referiu às palestras que ela proferia, na Rádio Ministério da Educação, de 1962 a 1982: “Meus amigos, meus inimigos, aos sábados, (...) sintonizem pois os seus rádios (...) e ouçam ‘Camões, poeta de todos os tempos’, na voz bonita e no comentário claro e sábio de Cleonice Berardinelli.”
Já Carlos Drummond de Andrade dedicou o seu Fazendeiro do ar & Poesia até agora à nossa nova companheira:
“Deixarei minha fazenda
perdida nos mapas do ar,
para, em singela oferenda,
constante me dedicar
a Cleonice Berardinelli.”
E a ela voltava:
“Com respeitoso carinho
trago pois minha oferenda
de bem humilde vizinho (...)
(a justiça é que me impele)
à genuína fazendeira
Cleonice Berardinelli.”
Mas tampouco poderíamos reduzir o interesse agudo e penetrante de Cleonice aos poetas. Pois, nas “Linhas mestras da literatura portuguesa”, que organizou para lecionar na Universidade Federal do Rio de Janeiro, concluiu se apresentarem como seus aspetos mais marcantes o subjetivismo, o nacionalismo (forma mais ampla do subjetivismo, tomado em duas vertentes, a laudatória e a crítica), o saudosismo e o messianismo. Por consequência, os autores mais representativos daquelas linhas mestras seriam, para ela, o historiador Fernão Lopes, os dramaturgos Gil Vicente e Bernardo Santareno, o poeta lírico e épico Luís de Camões, o ficcionista Eça de Queirós, e o poeta e prosador Fernando Pessoa. Os maiores, porém – insiste –, foram Camões e Pessoa.
Em seu ensaio “Para uma análise estrutural da obra de Eça de Queirós”, Cleonice disseca livros que me encantaram a juventude, como atraíram a geração precedente (recordo-me de Afonso Arinos citando, de cor, longos trechos da prosa do extraordinário escritor). À nova acadêmica pareceu “lícito, se não aconselhável, considerar a obra de Eça como uma grande narrativa, cujo tema seria – para empregar um termo científico, do agrado do naturalista que ele era à altura em que concebia o projeto – a biópsia da sociedade portuguesa. (...) A conclusão-síntese, que o leitor já tirou por conta própria (...): situado em nível social cada vez mais alto, com antecedentes que o tornam consciente e responsável, o personagem-título – que acaba por ser comparado a Portugal – comete faltas cada vez mais graves e menos justificáveis. Girando em sua volta num mundo sempre mais representativo da totalidade, mais válida também será a crítica social. A par deste agravamento de juízo, irá surgindo (...) a sua atenuação por uma espécie de fuga para o passado (...). Unindo-as, temos o lado positivo em que (...) se insinua uma solução menos pessimista.”
Cleonice foi chamada por Aníbal Pinto de Castro, lente em Coimbra, “a grande senhora dessa universidade do mundo lusófono”. E ela explica por que: “Batalhamos pela expansão da cultura e, especialmente, da literatura portuguesa, em territórios onde a língua é a mesma, ou onde as línguas são outras.” O professor luso, ao se estender sobre a nossa recente e ilustre companheira, julgaria que “a figura e a ação de Cleonice Berardinelli, que podemos considerar, sem lisonja nem hipérbole, uma das personalidades que mais longe e com maior altura alcançou nos doutorais dessa grande universidade do mundo lusíada, cujas paredes se alargam por mares, continentes e nações, aliando, em suma gentileza e elegância, a dignidade de uma grande senhora com o saber feito de honesto estudo, só é possível aos mestres de rara e excelsa estirpe. E muito importa salientar, neste momento em que a homenageamos em Portugal, o quanto Portugal lhe deve, sem que para merecer essa dívida tenha postergado, em qualquer momento, a sua alma brasileira, e o espaço que nela ocupou sempre o conhecimento e o culto dos grandes textos e das grandes realizações do espírito da sua pátria.”
Ivo de Castro, da Universidade de Lisboa, fez-lhe coro: “A norma culta a que pertence a língua de Cleonice integra-se, assim, na variante nacional brasileira, ocupando dentro dela a posição mais ligada à variante portuguesa, mas, mesmo assim, dela se distinguindo.”
A alegria de aqui saudar Cleonice Berardinelli me traz à memória saudosa a lembrança de outra figura admirável da nossa vida literária que, infelizmente, já não se encontra entre nós. Essa amiga querida, herdada do convívio quase diário que mantivemos, em Roma, com o poeta Murilo Mendes, de quem era discípula dileta e confidente, viria, no futuro, responsabilizar-se pela organização, publicação e divulgação da obra do grande escritor mineiro, exaustivamente coligida e organizada em Poesia completa e prosa. Acolher Cleonice recorda-me Luciana Stegagno Picchio, por quem fui igualmente distinguido a fim de recebê-la nesta Academia como membro correspondente. A Luciana, muitos laços de grandes serviços prestados à literatura brasileira e portuguesa unem Cleonice.
Ao integrá-las entre nós, acolhemos um espírito que, encarnando toda a herança humanística da latinidade, as tornou filhas de Roma e da Lusitânia. E, quando as abrigamos entre nós, nada mais fizemos além de reconhecer o empenho extraordinário com que, durante décadas, essas duas estudiosas infatigáveis se entregaram ao estudo e difusão da cultura literária do Brasil e de Portugal, como professoras, investigadoras, ensaístas, críticas, filólogas, historiadoras e editoras.
No ensaio “Uma ilha para Cleonice”, constante do livro Figuras da lusofonia – Cleonice Berardinelli, Luciana afirma que a nova acadêmica, “dentro da nossa literatura luso-brasileira, foi sempre uma ilha. Uma ilha de cultura portuguesa dentro do mundo acadêmico brasileiro. E, na Europa, uma ilha de cultura e de doce fala brasileira dentro do mundo acadêmico português.”
Se a italiana participou, em Lisboa, do Congresso Internacional por ocasião do quinto centenário do nascimento de Gil Vicente, e preparou verbete sobre ele para a Enciclopedia dello Spettacolo de Roma, a brasileira recuperou, em edição nacional, uma coletânea da obra do eminente teatrólogo português. A propósito de Gil Vicente, observa Cleonice, “o grande poeta que, mesmo no teatro, escrevia sempre em versos, jamais utilizou a medida clássica dos versos decassílabos, estabelecida na época. Continuou escrevendo as obras à sua maneira.”
Luciana e Cleonice se aproximaram de Jorge de Sena, batalhador incansável contra a ditadura fascista de Salazar, e que, obrigado por isso a deixar Portugal, se refugiou entre nós, lecionando em universidades paulistas, e adquirindo a nacionalidade brasileira. Luciana chegou a traduzi-lo para o italiano, e Cleonice, na pós-graduação da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ofereceu disciplina sobre “O poliédrico Jorge de Sena”. Legou sua biblioteca particular à Cátedra Jorge de Sena para Estudos Literários Luso-Afro-Brasileiros, de cujo Conselho Administrativo participava no Departamento de Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde, a partir de 2002, instituiu e financiou uma bolsa de pesquisa com o seu nome.
A propósito de José Saramago, Luciana escreveu Instantanee per um ritratto, e Cleonice foi com ele, quase simultaneamente, eleita para esta casa. O prêmio Nobel português disse, desta amiga, que “ela faz parte da aristocracia do espírito, essa que, sim, é necessária para a evolução da sociedade.”
Luciana preparou verbetes sobre Luís de Camões para a Enciclopedia Europea Garzanti, e acerca de Fernando Pessoa para a Cultura del Novecento, ambas editadas em Milão, enquanto Cleonice elaborou edições críticas sobre os dois poetas maiores de Portugal. “Na universidade, graças à professora Cleonice Berardinelli, descobri a beleza que havia no magistral épico de Camões”, reconhece o discípulo Zuenir Ventura.
Enquanto Luciana Stegagno Picchio era acolhida pela Academia de Ciências de Lisboa, e premiada com doutorados honoris causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pela Universidade Clássica e pela Universidade Nova de Lisboa, Cleonice se tornava membro correspondente daquela Academia de Ciências, em sua Sessão de Letras, e, titular, da Academia Brasileira de Filologia. Portugal outorgou a Luciana, pelas mãos do então-presidente Mário Soares, membro correspondente da Academia Brasileira Letras, a Ordem de Santiago da Espada. A italiana benemérita receberia ainda, do Brasil, as ordens do Cruzeiro do Sul e de Rio Branco.
O Conselho de Cultura do Rio de Janeiro atribuiu a Cleonice o Golfinho de Ouro. Ela é doutora honoris causa pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, tendo sido condecorada com as ordens portuguesas do Infante Dom Henrique e de Santiago da Espada, ao passo que o Itamarati se honrava em conceder-lhe a Ordem de Rio Branco, como justa retribuição aos méritos de quem lecionara no curso para formação de diplomatas do Instituto Rio Branco em 1961 e l962 (anos estes, permito-me recordar, em que Afonso Arinos foi ministro de Estado das Relações Exteriores).
Last but not least, aproxima-as mais ainda a beleza da top model brasileira, iluminando a capa de Cleonice: clara em sua geração, e a da formosa enfermeira ruiva, a encantar os espectadores dos filmes neo-realistas na Itália do após-guerra. E se alguém duvidar do que vos conto, torno prudente, como Gonçalves Dias: “Meninos, eu vi.”
Não abusemos, porém, do tempo que, nesta noite de gala, poderia ter sido ocupado, quase exclusivamente, pela aula magna a nós ministrada pela nova acadêmica e educadora de sempre. Assim, tenta-me parafrasear o velho amigo, grande diplomata, grande filólogo, grande lexicógrafo Antônio Houaiss, que lecionou no mesmo colégio onde fui aluno de Cleonice, seria recebido na Academia Brasileira de Letras por Afonso Arinos, e foi meu saudoso predecessor nesta casa: “Se algumas lições a vida me deu, uma é esta: em momentos assim, é mister ser breve. No caso, a brevidade se me impõe por muitos motivos: a riqueza da personalidade e da obra da minha homenageada; a circunstância de que não quero agradecer-vos a atenção e a presença com pagar-vos de uma digressão que vos venha a ser enfadonha. Entre o pecado do excesso e o pecado da carência, buscarei ficar neste, por mais leve, creio.”
Ninguém melhor do que a própria dona desta bela festa para resumir afinal, simples e objetiva como sempre, o que tem sido o seu itinerário admirável, a sua demorada travessia: “Neste momento, a que cheguei por um longo caminho, que passou por uma vida familiar feliz, por um percurso escolar afetuosamente estimulado por meus pais e seguido lado a lado com meus irmãos, por um casamento bem sucedido, por um convívio afetuoso com sobrinhos de sangue, com filhos, netos e bisnetos (não nascidos de mim, mas assim amados, num amor por eles retribuído), por uma vida universitária em que, como discente, tive mestres inesquecíveis, em que, como docente, consegui fazer uma carreira que, em extensão e dedicação, desafia paralelos, e ao longo da qual transformei alunos em colegas e amigos os mais queridos, um percurso que passou por muitas alegrias e tristezas, com feridas ainda não cicatrizadas.”
Mas sinto, agora, que o reconhecimento acadêmico, embora tardio, das suas virtudes excepcionais, terá o condão de esparzir, enfim, um bálsamo definitivo sobre a alma da mestra amada. Podemos dar graças a Deus por haver-nos presenteado esta mulher generosa e incansável, esta existência fecunda em que tantos discípulos puderam valer-se dos seus ensinamentos sempre apurados, sempre cuidados; por esta trabalhadora impecável no cumprimento da tarefa, na simplicidade, na coerência, na dignidade, na dedicação, na integridade, na abnegação, na lealdade; por esta estudiosa incessante que prestigiou nosso país em tantos congressos, simpósios, colóquios, palestras e outros encontros acadêmicos, no Brasil e pelo mundo afora; por esta autora e editora crítica de tantos livros publicados entre nós e em Portugal, de ensaios e conferências com que enriqueceu os estudos do idioma; por esta grande dama da literatura brasileira e portuguesa que é Cleonice Berardinelli; por esta professora que definiu, numa frase, seu destino e sua vida: “Descubro que o magistério, para mim, não é apenas o solo de origem, nas também o espaço de realização do desejo. Princípio e fim.”
5 de abril de 2010